"William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910, com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória."
Stoner, John Williams, página 7, editora Rádio Londres, 2015
Por que um livro, uma obra, um
romance sobre um sujeito que não teve nada de excepcional em seus mais de 60
anos?
Por que contar a história de um homem que abandona
um curso de ciências agrárias, que teria aplicação prática e imediata para o
seu sustento próprio e de sua família; que troca esse curso pelo de Letras após
uma epifania durante uma aula sobre Shakespeare; torna-se professor na mesma
instituição Universitária onde, anos antes, fora um aluno regular, mediano;
casa-se com uma mulher que irá atormenta-lo ao longo dos anos de casamento;
viverá os temores e dilemas de duas guerras mundiais; terá um desentendimento
irreversível com um colega de trabalho, que fará de tudo para prejudica-lo
sempre que possível; irá viver uma paixão avassaladora e extraconjugal, da
qual, terá que abrir mão após as pressões sociais e morais; e que, restando-lhe
apenas dois anos para sua aposentadoria, descobre que está com um câncer maligno
e morre, segurando um livro de sua autoria?
Stoner é, antes de tudo, um estoico,
um sujeito que, apesar dos inúmeros reveses que se apresentam ao longo de seu
caminho, prefere ou permite ou deixa, simplesmente, as coisas acontecerem ao
bel prazer das circunstâncias, aos caprichos insondáveis do Destino.
A cada nova situação, na qual, ele se
encontra tendo que confrontar desejos próprios e convenções sociais, você se
pergunta, desapontado, mas ao mesmo tempo condescendente, qual ou quais teriam
sido as reais motivações de Stoner para seguir tal caminho e não outro, também
plausível, e, até certo ponto, ver sua existência tomar rumos que poderiam ser
evitados. Você, então, se sente frustrado com as escolhas do nosso protagonista
e as consequências delas, para logo em seguida sentir uma espécie de comoção e
empatia pelo ritmo lento e banal com que nosso personagem segue sua trajetória. É quase inevitável não sentir essa mistura de sentimentos antagonistas
com a condição, cada vez mais, autodestrutiva de Stoner. Os efeitos das
escolhas dele nos parecem óbvios, pois, ainda que envolvidos com sua
história, estamos acompanhando esse drama de lado de fora. Estamos numa posição
confortável para emitirmos julgamentos de ordem moral quanto aos seus
posicionamentos. No entanto, se pararmos, um pouco que seja, para avaliarmos
todas as variantes possíveis de decisão do nosso herói, deparamo-nos com um
leque não muito variado de possibilidades, e, para nossa surpresa ou não, um
desses possíveis caminhos é justamente o que Stoner resolveu deixar sua vida se
encaminhar. Como podemos condená-lo então?
No romance temos um par de forças,
contrárias e complementares, a saber, o amor e a guerra, que parecem ser um dos
poucos elementos capazes de interferir, significativamente, no cotidiano
ordinário de Stoner, restando a este a perplexidade estoica diante dos acontecimentos
que vão se desenrolando a sua frente e o arrastando, impiedosamente, para um
destino sem volta, para uma aniquilação gradual de sua pessoa, ainda que a
iminência da morte proporcione uma reconciliação com seu passado, com sua
esposa, com sua filha, com a existência que viveu e consigo mesmo.
Talvez não seja mero recurso
narrativo colocar como pano de fundo dessa história banal os dois grandes
conflitos mundiais, pois, durante esse contexto é “inaugurado” o chamado romance moderno, que tem como uma das principais marcas obras que
retratam a existência, sem grandes feitos de coragem e heroísmo, do chamado homem moderno.
Talvez, imersos nesse mundo cada vez mais automatizado e rotineiro, e, ao mesmo tempo, como parte integrantes e ativas dele, o que nos resta, além do estoicismo de Stoner e sua dedicação,l seja esperarmos sem muita expectativa por um epitáfio singelo numa lápide sem
ornamentos elaborados ou uma dedicatória laudatório em nossa homenagem, ainda
que simples, em alguma obra de relevância questionável e já consagrada do
acervo de uma biblioteca.
Ou ainda, provavelmente, ninguém se lembrará da gente com alguma nitidez, e nossa memória irá se diluir, gradativamente, num esquecimento puro, autêntico, comovente, como essa história de um homem comum chamado Stoner.