quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Consciência Humana

Eu sou assim
Essa mente que em vão sonha
Perdida em delírios de festim
Mente descomunal, humana
Saber o que quer enfim
É o seu principal grande drama
Labirinto sem inicio, sem fim
Gasto pelas teorias mundanas
Debilmente arquitetado bem no meio
De um jardim sombrio
De onde pássaros de asas raras
Não podem voar
Pois seus cantos ecoam
Versos dementes, tardios

Mente humana, confusa, calada
Turbilhão de mil pensamentos
Recôndito por onde a vida passa
Revolto remanso dos sentimentos

Mente humana
O ser humano te olha inquisidor
Vacilante entre o desejo de saber
E a dúvida da resposta
O que lhe causa peculiar rancor:
Em ser uma espécie pensante, terrena
Ainda que insignificante, pequena
Mas que, do auge de sua inocente certeza de superioridade,
Considera-se portadora de angustiante dor –
A consciência maior de sua mortalidade

Benevolente Escravidão

Geme, escravo maldito!
Meu chicote te morde a pele
E arranca teu sangue
Com açoite e destreza

Geme, maldito, herdeiro do Cão!
Hoje, ou te mato nesse tronco,
Ou te arrojo nesse chão

Beija o chicote antes que ele estale
Os lábios látegos nessas tuas costas fendidas
Sinta o gosto do teu próprio sangue
Veja como ele deságua
Vai me pagar por cada gota do meu suor
Por eu estar aqui, a te açoitar

(Chicote, lépido, fremente no ar, estala
Negro se contorce)

Vamos, negro maldito
                Chore
                Implore
Basta pedir perdão
pois teu Senhor é cristão benevolente
                e te castiga somente
                para que tu não te percas
                em vão

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Poema Fraternal

À memória de meu irmão Flavio

Só depois de um tempo
é que percebo que tudo foi um sonho

Eu e você a correr no meio da rua
a fazer algo que nunca fizemos juntos –
empinar pipa
Você me sorri
enquanto me vê correr
tentando colocar uma rabiola
numa pipa que voa baixo e que não sabemos de quem seja
Um carro passa – um susto -, quase me atropela
Você joga seu chinelo contra o carro
que segue rápido e some numa curva invisível
Nós dois sorrimos
Como é possível se a rua é reta?
Sorrimos e nos divertimos
Não percebo que só pode ser um sonho
Na vida real, enquanto você era vivo
não tenho lembranças de nós dois assim juntos
correndo, felizes, sorrindo

(Me lembro apenas de que, como uma mãe perdida em zelos, eu tinha um medo danado de que você nunca aprendesse a jogar bola e que, com isso, sofresse nas mãos dos outros garotos)

Quando dou por mim
estou no banheiro diante do espelho
É madrugada, acho
Tenho os olhos cheios de lágrimas
(você me sorria...)
Tudo, meu irmão, foi um sonho
apenas um sonho

O reflexo no espelho

é você, meu irmão
morto

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Silêncio


O que me resta
é me contentar com a ambiguidade do seu silêncio,
das suas poucas palavras
Logo eu, que me achava tão lacônico, soturno

A desilusão
é saber que o seu silêncio é só isso:
não a ausência óbvia de palavras,
mas tão somente silêncio,
sem camadas de sentidos ocultos,
sem sombras metaforizadas,
sem entrelinhas enviesadas

Talvez até seja o signo ainda incompreendido, por mim,
de um sentimento mais ameno ou até mesmo mais amargo

Você bem me conhece, sabe o quanto é inevitável
essas minhas armadilhas verbais, essas divagações

Eu levanto os olhos do papel onde escrevo
(outra mentira: escrevo direto na tela do celular ou do computador)
e procuro seu rosto, uma imagem sua, uma lembrança...
Mas o silêncio (de novo ele), o silêncio é como uma assombração
presente em  cada recanto de uma casa onde você nunca esteve
Isso me provoca delírios, e fico cheio de esperanças

No entanto, sei que estou sombrio, e que a doença é mais que um simples e pretensioso verso

Tudo bem, não precisa dizer nada
(como se eu conseguisse fazer você falar, ou como se eu merecesse ter em meus ouvidos sua voz a me dizer qualquer coisa)

Ainda estou absorto nesse exílio de mudez e palavras - seu olhar

II

Vou fazer desse seu silêncio algo que eu não soube ou não fui capaz de fazer de mim                                                                                                                                      [mesmo
de nós:
um ponto singular no Universo
onde não há nada de mais
do que a latente possibilidade
de uma voz se expandir
e (me) dizer
oi
ou dessa mesma voz
se contrair
e apenas (me) sorrir
um sorriso mudo
sincero
um apelo carinhoso
de que eu não diga mais nada
e fique quieto
a ouvir esse silêncio que há em mim
e que é você
a sua voz
eu sei

No
ar
partículas imóveis
mas eu sei
posso ouvir
você
aqui

comigo

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Um Escritor - Parte I

afastar móveis, ajeitar-se na cadeira, balançar as pernas e tamborilar com os dedos – ele sabe que todos os esses gestos e movimentos são uma tentativa desesperada de atribuir um rito a algo que já não tem nada de ritual: sentar-se e escrever, ou melhor dizendo, sentar-se para escrever.

a luz da lâmpada logo acima de sua cabeça reflete direto na tela do computador. isso o irrita. tira sua concentração. o faz achar que sua falta de criatividade provem dessa mera luz opaca, amarela a se dissipar pelo espaço pequeno de um quarto, não de um escritor, mas de um alguém que pretende ser um. ainda que, para esse alguém, ser um escritor seja só uma ideia vaga e obscura na qual pretende se agarrar até que tenha desperdiçado todos os anos de sua vida em coisas e pessoas desmerecedoras de toda sua dedicação. isso é o que ele acha, o que ele pensa. não necessariamente a irrefutável verdade única dos fatos.

nem bem escreveu umas poucas palavras já se vê agoniado imaginando de onde tirar tantas outras palavras para preencher páginas e páginas em branco. esse branco intransponível. frágil, perturbador de uma folha (tela) que parece esperar com indiferença que seja lançada sobre ela tudo aquilo que a humanidade de alguma maneira perseverou para conseguir exprimir e que, agora, encontra-se em perigo de extinção pela falta de aptidão de um escritor incipiente.

imagem deplorável, digna de pena, a de um escritor lutando, quixotescamente, contra um paredão intacto, límpido. arrematando contra ele palavras, frases, parágrafos como se fosse tão eficientes e belicosos quanto espadas de lâmina afiada.


o que pode um escritor. nada, absolutamente nada. além de escrever e se resignar à volúpia das palavras. entregar-se a frases de efeito com a mesma ingenuidade louca de perpetuamento da espécie com que alguns animais se lançam às garras de um predador acreditando estar se lançando para o abismo da gratidão, da fama por parte de seus pares. um escritor não sabe mais do que seus escritos podem dizer. e, se ele não consegue abarcar em suas obras toda a complexidade de seu próprio espírito, de sua própria alma, ele deve perecer e ser execrado por aqueles que, ainda que não possam fazer o mesmo, tem o dever de julgá-lo impiedosamente por ter se atrevido à empresa tão árdua.

não se deve deixar seduzir pelos elogios vazios, pelas teses acadêmicas, pelos artigos laudatórios; pelos risinhos toscos em reuniões com leitores e editores; não se deve se rebaixar pela influência mercadológica de livreiros; não se deve frequentar livrarias esperando ser reconhecido, nem muitos menos assediado; não deixe que esse mundo de vãs expectativas transformem as suas em estatísticas de vendas e projeções de mercado; faça somente o que não for possível deixar de fazer, mas faça com a certeza alegre de estar fazendo por convicção e vontade e não por imposição ou medo.

arrependa-se do que escrever quando soar dogmático, categórico. abstenha-se dos efeitos de conselhos pretensamente sábios. os paradoxos, as contradições, as incongruências – esses sim, são princípios pelos quais você deve encaminhar sua escrita. se te impedem forças estranhas, forças externas a você, lute, resista, mas saiba que, em pouco, até suas palavras serão restos de uma civilização há muito perdida.

a humanidade de um escritor está onde ele menos espera. não está no cinismo cético de ditos satíricos (mas também aí pode estar); não está no deleite de trechos poéticos, sintaticamente perfeitos (mas também aí pode estar); não está nos silêncios e omissões. conscientes ou não (mas também aí pode estar);  não está sequer naquilo que ele acredita ser o principal motivo de sua vida.

há escritores na humanidade (e já houve muitos, e muitos ainda estarão por vir) mas eles não são humanos. mas não se pense que eles possam ser, então, de natureza extraterrena. também não o são. os escritores são para a humanidade o mesmo que as palavras são para os escritores. expressam tudo o que se possa compreender da experiência humana e da existência, mas no fundo, são absolutamente dispensáveis.

eles costumam se supervalorizar em detrimento da consciência mediana da maioria das pessoas. são covardes, pretensos. seres escorregadios, obtusos. omitem-se em declarações ditas e escritas por seus personagens. – essas aberrações externalizadas de seu mundo interior, não necessariamente íntimo. são falsos, mesquinhos. divertem-se com jogos de palavras e sentenças ambíguas. se odeiam, e invejam-se com orgulho. vivem dos esforços alheios. suas obras, seus livros são embustes para atrair leitores desesperados por lerem algo que eles acreditam ser um reflexo fiel (e melhor acabado) de suas próprias experiências. como se isso fosse possível. como se as palavras pudessem, de alguma forma extraordinária, conjugar uma ou mais experiências de vidas totalmente díspares em poucas linhas encadernadas em letras legíveis e diagramação agradável.

desconfie de um escritor que se mostre como um ser à parte ao mundo ao seu redor. ele fará de tudo para convencê-lo de que não há em seus escritos o menor resquício passível de acusação de subjetivação da realidade através de seu mundo psíquico. mas também desconfie de um escritor que tente provar exatamente o contrário. nenhum escritor é digno de confiança, por mais que nos entretemos com suas obras, com seus enredos mirabolantes, com seus finais inesperados.

Continua...

A Um Escritor - Parte II

...Continuação

ele para, pensa, reler o que já escreveu até ali, satisfeito do resultado. na verdade, sabe muito bem que terá que prosseguir por uma via tortuosa, cheia de atalhos falsos, becos sem saída, bifurcações ilusórias. já desapontado, ele sabe que tudo isso não passa da realização exata do que ele considera ser um fracasso. pois para poder escrever terá que superar o próprio ato da escrita. e ele não sabe como fazer isso. já leu tantos livros, tantos ensaios de outros que, ele ao menos acredita, passaram e superaram esses mesmos desafios pelos quais ele está passando agora. ele lembra de um artífice óbvio, que quase sempre dar certo: escrever sobre a dificuldade de escrever, ou seja, fingir que está escrevendo algo quando o que se está realmente fazendo é valendo-se das palavras para combatê-las. não se está expressando nada – está-se, isso sim, travando uma batalha ingloriosa.

o seu orgulho provém dessa certeza cabal de que irão admirá-lo por sua destreza. por sua persistência em fazer deitar essas coisas flutuantes em papel estático, impresso. o que seria de um escritor se não fosse essa ilusão... sua ilusão de vencer sempre as palavras, quando estas, senhoras soberanas em seu reino de mudez, alinham-se sucessivamente no texto causando a ilusão de se estar lendo o que se pretendeu escrever.

elas não dizem nada. um escritor não tem nada a dizer. sua voz é tão rouca quanto à das outras pessoas, seja ele um escritor dito experiente ou novo. seu estilo, sua prosódia, meros efeitos de uma retórica acadêmica. arrancai cada palavra, uma por uma, de um texto do mais celebre escritor, e verá que não passam de artefatos fossilizados, de um maquinário engenhosamente arquitetado mas, simplesmente, carente de qualquer sentido em si mesmo. as palavras nada dizem. são só os ouvidos humanos que são suscetíveis demais às vibrações de partículas sonoras em atrito com o ar. e o cérebro humano encarrega-se de lhes atribuir sentido, os sentidos aos quais ele já está acostumado.

cena deplorável a de um pretenso escritor prostrado diante de meras palavras irrequietas, prenhes de sentidos ambíguos, de imagens difusas sem objetos definidos. ele vai parar. vai desistir. de tudo o que tinha pensado em escrever, só lhe restam essas mal traçadas linhas. perdeu-se em seu próprio turbilhão de ideias. perdeu-se entre seus pensamentos e os pensamentos dos escritores fantasmas que o antecederam. tinha pensado em tantas coisas, em tantas tramas entre personagens intrigantes interagindo entre em si, mas acabou aí, diante de um texto sem nexo, sem substância, de uma espécie barata de monólogo interior sobre o ato da escrita, um arremedo de reflexão metalinguística à maneira daqueles que ele tanto admira. por que será que todo escritor se acha digno de pena quando falha, quando vê seus esforços exauridos depois de horas e horas de reflexão e escolhas das melhores frases, dos melhores trechos, da melhor forma de compor um texto – tudo isso para não dizer nada, tudo isso para disfarçar seu desespero, sua mesquinhez e insignificância perante o mundo. de onde ele acha originar-se esse direito da humanidade se compadecer de seu insucesso, de sua derrota incontestável e absoluta. de onde provem essa ilusão de ser devidamente compreendido.

já consciente de sua derrota, ele vai salvar o arquivo e esquecê-lo por um tempo, agarrando-se com todas as garras à esperança de que o tempo, somente o tempo, esse agente secreto que se infiltra em todos as coisas inanimadas e viventes para dotá-las de alguma significação, vida e morte, – de que o tempo possa torná-lo mais compreensível com o que escreveu nessa data quando lê-lo daqui a alguns dias, ou anos, e perceber, nostálgico, o quanto ele terá mudado e como, mais uma vez, ele falhou e se rendeu ao encanto perigoso de tais palavras. sempre elas – as palavras.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Das Memórias de um Subsolo

(...) um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos dos traços de um anti-herói, e, principalmente, todo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos.”  
Memórias do Subsolo, Dostoiévski 



    As memórias acabam sem terem terminado. O narrador nos diz em poucas palavras que é melhor termina-las ali onde se resolveu encerra-las. É a partir daí que as memórias recomeçam, não exatamente no livro, mas sim em nós, leitores dessa história cheia de “verdades ignóbeis” e do “belo e sublime”.

   Perguntamo-nos perplexos sobre a natureza, sobre a possível mistura de sentimentos, impressões e julgamentos a respeito desse personagem/narrador que ora nos parece um legítimo herói de um romance, ora um sujeito vil, um anti-herói.

   O narrador/personagem está, em diferentes momentos, nos lembrando que tudo aquilo que se está narrando como tendo sido vivido, não passa, até certo ponto, de mero recurso estilístico, literário a serviço de um esforço “subterrâneo” de garantir aos fatos narrados alguma dignidade artística, ainda que ambígua, pois os acontecimentos, por vezes, mostram-se nos seus mais prosaicos e desinteressantes detalhes (talvez isso se dê mais por culpa do escritor do que do narrador, já que aquele ganhava por laudas, pela quantidade que escrevia).

   Devemos levar a sério tudo isso que nos está sendo contado? Quer dizer, devemos nos “co-mover” e nos deixar afetar pelos fatos biográficos desse sujeito, igualmente, tão vil quanto terno? Sua franqueza, ou ao menos sua pretensa franqueza, merece nossa credulidade, uma vez que ele mesmo nos diz ter dissimulado sentimentos e atitudes por várias vezes em sua vida? Se formos leitores acostumados ao gênero literário, então acreditamos que sim, que vale a pena deixar-se conduzir pelos meandros subterrâneos desse homem-subsolo, que vem a ser ou ter muito de nós mesmos no que diz respeito às sublimidades e vilezas humanas. Além do mais, a narrativa é conduzida de modo impecável, alternando passagens de divertido sarcasmo e ironia com outros de repulsiva e, talvez, exagerada franqueza.

   Somos convidados, de modo um tanto peculiar, a acompanharmos esse labirinto subterrâneo no qual somos, a um só tempo, arquitetos e prisioneiros. E a Literatura pode ser esse tênue e perene fio pelo qual podemos nos enredar e nos guiar. Mas atenção, não se engane, ingênuo leitor, pois este artifício literário pode ser usado para fazê-lo se perder incontornavelmente por esse intrincado labirinto que é a mente humana, que é o próprio ser humano.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dorival e o Mar


"Dorival, vai não

Tá cheio de tubarão no mar

Val, vai não

Arranja um emprego no chão"

Dorival, Academia da Berlinda, álbum Nada Sem Ela


Eu sei, foi ele que trouxe você para mim. Mas Val, já pensou, ele quer te levar embora, te levar de mim. O que posso se não implorar que não vá, que não me deixes? O que pode uma simples mulher apaixonada, como eu, contra a força do Mar? Dorival, olhe, o mar é grandioso, não se pode negar. Mas é, também, cheios de artifícios. O bicho é manhoso. Quando ele mesmo não arrasta um pros seus domínios profundos, manda algum de seus: peixes encantados, sereias cantadoras, tubarões impiedosos. Não rias assim de mim. Se minhas palavras te parecem loucuras, baboseiras, lembra, lembra bem como foi que tu chegaste aqui, nesta ilha sem nome, de pescadores cegos e duma única mulher, que sou eu e que é tua, só tua.
Foi na manhã seguinte em que este aí, nesse movimento sem parar de braços de águas e de espumas salinas, que teu corpo foi trazido pra essas bandas. Ninguém tinha te visto. Só eu, naturalmente. A te arrastar em folhas de bananeira por esta areia quente. Cuidando de ti desde o primeiro momento em que meus olhos viram e recaíram sobre teu peito desnudo, teu ser indefeso jogado à beira do mar. Parecia até que ele, de raiva de ti, te judiou e te vomitou aqui, sem mais nem menos, ao não ser pra mostrar sua força marítima. Nem imagino o que tu fizeste. Só te digo uma coisa: foi sorte tua, mais ainda sorte minha. Te limpei dos ferimentos abertos pelos corais perigosos, te velei por tantas noites, acalmando teus sonhos de afogado e segurando tuas mãos de dedos, mesmo fracos, tão potentes, bebi da água dos teus pulmões encharcados e senti a quentura do liquido meio pegajoso e extremamente salgado que cuspias enquanto te debatias. Pra que essa cara? Quando se deseja muito alguém, como eu te desejo, Dorival, nem mesmo essas miudezas podem diminuir a intensidade, a dedicação, o meu querer. Por nenhum só momento eu pensei em te perder naqueles dias de vigília. Sabe, Seu Homero, aquele cego falador e contador de histórias, me disse, ao meu ver dedicando todo meu tempo a te salvar, que nós dois éramos como os personagens duma lenda antiga, que ele gostava de contar mas que as pessoas já tinham meio que esquecido dela, e que versava sobre um herói de guerra que só consegue retornar pra sua casa, esposa e família depois de muitos anos a pelejar pelos mares deste aí, enfrentando toda sorte de armadilhas e contratempos. Seu Homero não é de terminar suas histórias, e esta, que ele me contava, parou por aí, sem conclusão, e eu fiquei meio que sem entender.
Tou te falando, Val, vai não. Esse mar é como uma visão que tenta atrair os outros com beleza, mas que no seu fundo, lá onde suas águas e seus seres são feitos de sombras e formas estranhas, só tem maldade e morte. Se tu fores, olhe, por mais que eu não queira, nem acredite nisso, não precisas voltar. E eu queria muito acreditar que, no caso de tu não retornar pra mim, pra nossa ilha, isso se daria apenas por escolha tua, por tua vontade. Quem me dera acreditar realmente nisso, e, por mais que eu sofresse e chorasse, ainda assim haveria em mim uma faísca de consolo a me alentar o coração magoado. Mas não seria assim, homem, tou te falando. Tu entras nesse mar calmo e, assim que ele sentir tua presença sobre as costas dele, o bicho se revela como o verdadeiro monstro que é. Te arrasta, te leva embora, tu vai, eu sinto medo, sou capaz até de pegar pau, pedra e fogo pra forçar o miserável a te devolver pra mim. Duvida? Num duvide da capacidade duma mulher perdida em amores, na capacidade duma mulher desesperada, capaz de enfrentar a própria Natureza. Ele deve até me odiar me ouvindo falar assim. Pois não importa. É a ti que quero agradar mais que tudo. Meu nego.
        Sabia que esses homens tudo cego e feio diziam pra mim que tu eras um homem sem destino, um sujeito sem rumo, amaldiçoado pra sempre por conta da tua cor. Não sei como eles sabiam e sabem da tua cor. Uns tiveram a ousadia de me dizer que te percebiam pelo mau cheiro de negro desterrado. Imagine só, quanto desaforo. Fiquei possessa. Dei nas cabeças deles, e nunca mais nenhum me falou tais gracinhas. Eu gosto de ti como tu és, com a tua cor a me lembrar das noites mais bonitas quando eu sinto uma coisa incontrolável tomar conta de mim e querer correr por teus braços e só me acalmar pela manhã, rendida sobre teu peito, deitados na nossa cabaninha revirada. Por falar nisso, Dorival, sabes como a noite vai estar hoje? Sabe não, é? E num quer saber? Então fica, e eu te mostro. Só que dessa vez, a gente vai pra lá, pra pertinho do mar. Vamos mostrar pra ele a nossa força. Quero fazer inveja. E depois, se tu quiseres, aí sim, tu podes ir, ainda que meu coração grite em silêncio, tu podes ir pro alto mar. Mas se ele não te devolver, pois saiba, vai ter guerra, vai ter tantas batalhas e não sei quantos conflitos, que até mesmo Seu Homero vai se ver obrigado a recontar aquela lenda antiga, e o herói, dessa vez, vai ser eu, Val. Vamos ver se esse mar pode mais do que eu.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Stoner - A Vida de um Homem Comum

"William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910, com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória."
Stoner, John Williams, página 7, editora Rádio Londres, 2015


Por que um livro, uma obra, um romance sobre um sujeito que não teve nada de excepcional em seus mais de 60 anos?

 Por que contar a história de um homem que abandona um curso de ciências agrárias, que teria aplicação prática e imediata para o seu sustento próprio e de sua família; que troca esse curso pelo de Letras após uma epifania durante uma aula sobre Shakespeare; torna-se professor na mesma instituição Universitária onde, anos antes, fora um aluno regular, mediano; casa-se com uma mulher que irá atormenta-lo ao longo dos anos de casamento; viverá os temores e dilemas de duas guerras mundiais; terá um desentendimento irreversível com um colega de trabalho, que fará de tudo para prejudica-lo sempre que possível; irá viver uma paixão avassaladora e extraconjugal, da qual, terá que abrir mão após as pressões sociais e morais; e que, restando-lhe apenas dois anos para sua aposentadoria, descobre que está com um câncer maligno e morre, segurando um livro de sua autoria?

Stoner é, antes de tudo, um estoico, um sujeito que, apesar dos inúmeros reveses que se apresentam ao longo de seu caminho, prefere ou permite ou deixa, simplesmente, as coisas acontecerem ao bel prazer das circunstâncias, aos caprichos insondáveis do Destino.

A cada nova situação, na qual, ele se encontra tendo que confrontar desejos próprios e convenções sociais, você se pergunta, desapontado, mas ao mesmo tempo condescendente, qual ou quais teriam sido as reais motivações de Stoner para seguir tal caminho e não outro, também plausível, e, até certo ponto, ver sua existência tomar rumos que poderiam ser evitados. Você, então, se sente frustrado com as escolhas do nosso protagonista e as consequências delas, para logo em seguida sentir uma espécie de comoção e empatia pelo ritmo lento e banal com que nosso personagem segue sua trajetória. É quase inevitável não sentir essa mistura de sentimentos antagonistas com a condição, cada vez mais, autodestrutiva de Stoner. Os efeitos das escolhas dele nos parecem óbvios, pois, ainda que envolvidos com sua história, estamos acompanhando esse drama de lado de fora. Estamos numa posição confortável para emitirmos julgamentos de ordem moral quanto aos seus posicionamentos. No entanto, se pararmos, um pouco que seja, para avaliarmos todas as variantes possíveis de decisão do nosso herói, deparamo-nos com um leque não muito variado de possibilidades, e, para nossa surpresa ou não, um desses possíveis caminhos é justamente o que Stoner resolveu deixar sua vida se encaminhar. Como podemos condená-lo então?

No romance temos um par de forças, contrárias e complementares, a saber, o amor e a guerra, que parecem ser um dos poucos elementos capazes de interferir, significativamente, no cotidiano ordinário de Stoner, restando a este a perplexidade estoica diante dos acontecimentos que vão se desenrolando a sua frente e o arrastando, impiedosamente, para um destino sem volta, para uma aniquilação gradual de sua pessoa, ainda que a iminência da morte proporcione uma reconciliação com seu passado, com sua esposa, com sua filha, com a existência que viveu e consigo mesmo.

Talvez não seja mero recurso narrativo colocar como pano de fundo dessa história banal os dois grandes conflitos mundiais, pois, durante esse contexto é “inaugurado” o chamado romance moderno,  que tem como uma das principais marcas obras que retratam a existência, sem grandes feitos de coragem e heroísmo, do chamado homem moderno.

    Talvez, imersos nesse mundo cada vez mais automatizado e rotineiro, e, ao mesmo tempo, como parte integrantes e ativas dele, o que nos resta, além do estoicismo de Stoner e sua dedicação,l seja esperarmos sem muita expectativa por um epitáfio singelo numa lápide sem ornamentos elaborados ou uma dedicatória laudatório em nossa homenagem, ainda que simples, em alguma obra de relevância questionável e já consagrada do acervo de uma biblioteca.

   Ou ainda, provavelmente, ninguém se lembrará da gente com alguma nitidez, e nossa memória irá se diluir, gradativamente, num esquecimento puro, autêntico, comovente, como essa história de um homem comum chamado Stoner.

domingo, 2 de julho de 2017

A Utopia das Distopias

“Nós estamos legando ao futuro bens de consumo fossilizados. Roupas, carros, aparelhos eletrônicos, e milhares de outros produtos, úteis e inúteis, que marcam esta civilização.”

Distopia e ficção científica andam quase sempre juntas. Às vezes, de modo indistinguível. Basta pensarmos ou lembrarmos de livros como 1984 de George Orwell, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Todos eles já consolidados como clássicos da Literatura Ocidental. Sem dúvidas, obras de relevância literária e político-social. Distopias nas quais as “pessoas” são “fabricadas” e educadas com características sociais e psicológicas pré-determinadas, para viverem em sociedades onde, não só os alimentos são deliberadamente racionados, mas também o conhecimento, ou melhor, o acesso ao saber, ao legado cultural, à História, pois, ou o passado está em constante “reconstrução” pelo Estado, ou as obras pelas quais seria possível conhecer um pouco mais sobre o conhecimento acumulado pela nossa espécie são impiedosamente destruídas pelas chamas da ignorância e intolerância de bombeiros incendiários.

Enredos, certamente, conhecidos por uma boa gama de leitores.

Agora, o que pouca gente deve saber ou conhecer é um livro de um autor brasileiro, no qual, distopia e ficção científica estão intricadas num retrato desolador de uma nação autoritária, de um certo país do futuro.

Não Verás País Nenhum, do escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi lançado em 1981. Nele, acompanhamos o personagem Souza, ex-professor de História, aposentado compulsoriamente pelo governo vigente, e que agora trabalha como burocrata pelo regime oficial. Sua resignação ao status quo começa a tomar rumos diferentes quando, certo dia, ele acorda com um furo no meio da mão. Este furo pode ser entendido de diversas formas, conforme a história avança. Pode ser simplesmente um problema físico, material, prático, psicológico, talvez decorrente das péssimas condições a que a população está submetida. Ou, uma espécie de metáfora pela qual se quer expressar que algo foi arrancado da vida de Souza, e das demais personagens a viver sob tal situação. O buraco também pode ser visto como uma possibilidade, uma passagem, um portal, uma janela pela qual o personagem pode ver, finalmente, o mundo a sua volta e, daí, vislumbrar, quem sabe, uma guinada em sua existência.

Souza e sua esposa Adelaide vivem em São Paulo. No livro, a cidade, assim como todas as demais, está desmantelada social e ecologicamente pelos avanços tecnológicos empregados de forma irresponsável, dos quais resultaram em falta de água, desmatamento da natureza e cerceamento de pensamento, de expressão, de individualidade. O cheiro mais comum é o de carne podre dos cadáveres a tostar sob o calor escaldante. Nesse cenário, o insólito, o irracional, o desumano é o corriqueiro, o banal. As pessoas menos privilegiadas bebem urina reciclada, só andam por determinados lugares, que são delimitados hierarquicamente de acordo com o status social de cada estrato, e que estão constantemente superlotados, ao ponto de elas terem que andar a passos curtíssimos, como se fossem um rebanho obstinado a caminho do abatedouro.

      Este livro é realmente de 1981?! Mas como é possível, se fala de temas tão contemporâneos, como a crise hídrica, a escassez de alimentos, o total descaso com o meio ambiente, aquecimento global, as dificuldades de mobilidade urbana... etc.?

      Uma obra perene, profética e desafiadora, como deve ser todo bom livro de Literatura, seja ele um romance distópico ou uma ficção científica.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

No nosso Deserto

quero me perder no teu deserto
no deserto do teu corpo
nas dunas do teu dorso
quero me afogar nas areias dos teus cabelos
que as carícias das tuas mãos
me açoitem com a fúria de uma tempestade
que  o silêncio entre nós
nos deixe ouvir
“os ruídos das estrelas”

Quando fores embora
e me deixar sozinha no vazio
me sentirei obrigada a ir em busca de nós
no deserto
a recolher memórias
como um arqueólogo de afetos
Talvez me vejas num take esquecido
dos teus filmes
a vagar por um mundo de poeira calor e frio
sedenta do companheiro de viagem perdido
e com olhos carregados de solidão e desejo
a estender os braços para tocar o teu rosto –
uma miragem de fato e gravata
no meu deserto


Um relato de viagem; um texto autobiográfico; uma história de aventuras e situações anedóticas; uma história de amor e sobre a impossibilidade do mesmo; sobre a fragilidade e grandiosidade da vida diante da vastidão desértica da Natureza, do Universo; apenas uma singela homenagem; ou até mesmo um relato de arrependimento por algo que não se fez... Ou tudo isso, ou nada disso, e somente o eficiente efeito de um recurso ficcional, onde traços biográficos reais se mesclam de forma praticamente indistinta de acontecimentos ficcionais.

A verdade é que No Teu Deserto, do escritor português Miguel Sousa Tavares, é um desses preciosos livros em que, a despeito de um texto despretensioso, deparamo-nos com um belo e poético “relato” do encontro e desencontro entre duas pessoas durante a viagem delas para o deserto do Saara (personagem este que pode ser entendido como uma metáfora da desolada condição humana).

Entre em contato com seu agente de viagem ou procure uma agência de viagem, e solicite um pacote para o Deserto do Saara. Perante o silêncio aturdido do atendente, diga, da maneira mais calma e despreocupada possível, sobre seu intuito com tal viagem: provar, experimentar e ler a mesma experiência narrada por Miguel (autor/personagem) em sua viagem para esse destino, na qual ele conhece Cláudia.

“Esta história que vou contar passou-se há vinte anos. Passou-se comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós, que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fi na camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.” – No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares, página 9, Editora Companhia das Letras, 2009



quarta-feira, 28 de junho de 2017

A Literatura como uma Orgia Perpétua

Não há tragédia maior do que terminar um livro com a expressão de indiferença, da mesma maneira que um autor poder ter ao compor uma obra que, no fim, não lhe desperta nada.

Se você já leu um livro de Literatura na sua vida e, simplesmente, não sentiu nada pelo o que estava lendo, então esquece, desista, você não é um leitor de ficção de literatura e, provavelmente, não entenderia toda emoção e comoção envolvidas no livro A Orgia Perpétua do escritor peruano Mario Vargas Llosa.
A obra é uma análise minuciosa e apaixonada, em um texto envolvente, rigoroso, “fluído”; um relato, um testemunho pessoal do autor/leitor sobre seu contato/leitura desse que é um dos livros mais emblemáticos da literatura ocidental – Madame Bovary.
Mario Vargas Llosa dividiu o livro, basicamente, em duas grandes partes, compostas por vários tópicos-perguntas a respeito da gênese da obra do escritor francês.
Na primeira delas, Mario nos conta, com um entusiasmo incontido, como se deu seu primeiro contato com a obra de Flaubert:

“No verão de 1959, cheguei a Paris com pouco dinheiro e a promessa de uma bolsa. Uma das primeiras coisas que fiz foi comprar, numa biblioteca do Quartier Latin, um exemplar de Madame Bovary na edição dos Clássicos Garnier. Comecei a ler nessa mesma tarde, num quartinho do hotel Wetter, nas imediações do Museu de Cluny. Aí começa de fato a minha história. Desde as primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo. À medida que avançava a tarde, caía a noite, apontava o alvorecer, era mais eficiente o transbordamento mágico, a substituição do mundo real pelo fictício. Era já de manhã – Emma e León tinham acabado de se encontrar em um palco da ópera de Rouen – quando, aturdido, deixei o livro e me dispus a dormir...”Orgia Perpétua, Mario Vargas Llosa, página 15, Editora Alfaguara, 2015

Na segunda parte começa um processo de “dissecção” do romance de uma forma original, que tenta mesclar a perícia do método acadêmico, típico em criticas e teses literárias, mas valendo-se de uma linguagem despojada, franca, quase ficcional, no sentido de que Mario tenta nos (re)contar uma história escrita por outro pessoa, conduzindo-nos pelos meandros admiráveis da verve criativa e obsessiva de Flaubert, sem que, com isso, percamos a vontade ou a curiosidade de lermos esse livro, para que possamos também nos deixar envolver em uma intricada “orgia perpétua”, também conhecida como Literatura, assim como Emma e seus romances, dramas e amantes. 



domingo, 14 de maio de 2017

Ser Feliz de Novo

Retóricas

quem de nós dois poderia prever
que os gestos de carinho
nas tardes gostosas no meio da semana
ou nas noites preguiçosas de domingo
se tornariam golpe traiçoeiro?

que o olhar com que nos amávamos
em silêncio ou gemidos
se tornaria em olhares enviesados
de acusações e até mesmo ódio?

quem de nós poderia prever
naquela ânsia louca entre beijos e entrelaçar de pernas
o sorriso desdenhoso de um
diante do desespero cabisbaixo do outro?

quem não se sente perplexo diante da lembrança
da alegria incontida dos dias de promessas de amor eterno
quando se encontra ouvindo palavras que contradizem 
tudo o que se viveu e que se quer lembrar?

Monólogo a Dois

- eu te amei em palavras e atos
- eu sei, mas não foi o suficiente
- eu te desejei mais do que a mim mesmo
- eu sei, mas não era preciso
- eu te consolei em todas as tuas quedas, no teu chafurdar na lama
- eu sei, mas eu certamente me levantaria sozinha
- me desculpe se te amei demais
- não faça isso, você sabe que as coisas não precisam ser assim

Retóricas

quem de nós dois poderia prever que tudo ia terminar assim
um sonho palpável, vívido
se esvaindo com a facilidade frágil de uma lágrima sem nenhum amparo?

Monólogo a Dois

- eu te traí, é verdade
- eu te perdoei, não negue
- eu te desejei e te amei, é verdade
- mas também a outra pessoa ao mesmo tempo, não negue
- eu fui fraca ao me deixar levar por loucos desejos
- eu fui tolo em acreditar que você poderia mudar

Doce Desilusão

que estranheza amarga essa de não reconhecer mais
a pessoa que mais se acreditava conhecer em toda sua vida;
que tristeza a desilusão de um amor que acaba;
que beleza indesejável essa de odiar o outro
e se sentir possuidor de uma dor atroz;
descomunal ilusão a dor causa quando percebemos tarde
a causa perdida

Epílogo

culpa de quem – queremos perguntar
mas nos calamos
por que sabemos que se desejássemos saber realmente a resposta
não nos entregaríamos mais a nenhuma outra possibilidade
de sermos feliz ao lado de outra pessoa
Talvez seja melhor sofrer a dor, a mágoa 
de um sofrer que sabemos passageiro
do que a certeza angustiante da impossibilidade de ser feliz
de novo

O Vento Sopra teu Nome

_De Poesias Piegas / Poemas Sentimentais


O vento sopra teu nome
É um sussurro quente, um gemido
Não, não estou perdendo a cabeça
Vejo tudo tão lúcido
Te juro, tenho os olhos limpos

O teu nome é um vento quente
ao pé d’ouvido
Eu te respondo:
- Estou aqui
E o vento passa
Um sopro sem boca
Um som sem grito

Eu sussurro o teu nome
O vento
sopra
e passa
Eu sei que é você
aqui comigo

SOLITUDE




_ter consciência de estar sozinho
põe a gente sentimental
A gente procura por qualquer caminho
mas só encontra um vazio sem-igual_

*
_ter consciência da solidão
é mesmo um pensamento em vão:
...você olha para coisas
as pessoas vêm e vão...
mas nada ganha forma
Os olhos turvos – um borrão_

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Tristeza x Melancolia


Breves considerações sobre a tristeza e a melancolia sob uma perspectiva nietzschiana

- Eu não estou triste. Sou melancólico. Qual a diferença?

Bem, o triste acha tudo sem graça, as pessoas, as coisas, a vida, por uma ou mais razões. Já o melancólico acha que, apesar de nem tudo ter graça e sentido e razão, ainda assim a Vida é uma experiência que vale a pena.

O triste, geralmente, é um debochado, um cínico, um fatalista. O melancólico acha que cinismo e ceticismo sem alegria são sintomas nem sempre óbvios de desespero e agonia; e por isso, considera-se um ser trágico.

O que o triste sente ele contamina a natureza, as suas formas, as suas cores, a sua contingência. O melancólico tem consciência de que, independente do que ele sente, só ele sente, ainda que outros tenham sentimentos semelhantes.

O triste confirma sua visão de mundo nas desgraças da existência, e se desfaz, facilmente, diante de sua patética solidão a encarar-lhe do espelho. O melancólico sente a dor de cada perda, a dor de cada angústia sem motivo aparente, mas, de alguma forma, se alegra quando vê seu reflexo frágil de coragem e medo.

O que sabe que irá morrer e se ressente da vida por isso é um sujeito triste, é uma pessoa com os olhos encobertos pela densa névoa da tristeza.
O melancólico também sabe que vai morrer, isso ele não nega, nem poderia ignorar. Mas também sabe que, enquanto isso não acontecer, terá que viver, escolher, sofrer, amar, perder, ser feliz, ou talvez nem todo esse amálgama de experiências vitais. E é aí, exatamente, nesse ponto de incerteza que reside a força, o desejo, o afã que o impulsiona para que siga, para que diga sim à Vida.