Entrou
no salão aos tropeços e empurrões.
Estava
molhado. Encharcado de chuva. Não de água do mar como alguns
pensavam ao sentir o seu cheiro de sal.
Escorregava
desastradamente devido ao caráter escorregadio de sua calda.
O
peito nu arfava. E por todo o corpo descoberto havia aberturas
profundas mas pequenas que se dilatavam e murchavam sem parar. Quando
alguém lhe segurava os braços ou lhe deitava a mão pesada, para
afastá-lo com um empurrão nada festivo, bloqueavam-lhe a passagem
do ar. Respirava com dificuldade devido à obstrução das guelras.
Os
olhos esbugalhados registravam as imagens que iam aparecendo pela
frente. Máscaras, serpentinas, confetes, luzes, músicas, fantasias,
danças. Festa.
Estava
numa festa à fantasia de tema marítimo.
Empurrado
pela agitação dos corpos convulsos, foi passando por entre aquele
mar de seres e criaturas diversas. Mexilhões, polvos, tubarões,
focas, golfinhos, baleias, ostras, plânctons. Estrelas-do-mar.
Capitães. Navios. Boias. Botes salva-vidas. Peixes e plantas
estranhos. Entre outros seres impossíveis de se descrever sem abrir
mão de uma linguagem científica rigorosa.
Encarava-os
com estúpida apreensão e curiosidade, deixando-se levar pela
euforia dos que festejavam.
Alguns
olhavam com receio a sua cara espantada. Ou crispavam o nariz num
movimento involuntário de repulsa pelo cheiro que sentiam exalar
dele.
Outros,
porém, embriagados e entusiasmados com os festivos e a animação
reinante, puxavam-no para uma dança sem jeito e sem graça. Sem
graça artística, subtenda-se. Ao que ele mantinha uma expressão
que não permitia ao seu par adivinhar se era dúvida ou embaraço.
Na
verdade, não podia se movimentar com desenvoltura tendo aqueles pés
atrofiados e cheios de escamas. Uma calda.
As
hostilidades foram diminuindo, e ele, aos poucos, cada vez mais, ia
sendo integrado à multidão festeira. Já conseguia controlar a
respiração e arriscava, muito tímido, um arrastar de calda na
tentativa de copiar os passos dos que dançavam à sua volta.
Rodopiou
como um pião endiabrado, ousando um passo mais audacioso, e acabou
dando uma rasteira formidável e certeira num marinheiro parrudo que
fumava um cachimbo. Este se levantou rapidamente, querendo amenizar o
efeito da queda com a suspensão ágil e imediata. Abriu os braços,
afastando as pessoas ao seu redor. Até que ficaram só os dois
rodeados por uma plateia exótica no meio do salão transformado
pelos olhares expectantes em uma arena de briga carnavalesca.
O
marinheiro almejou-o com fúria. Cuspiu um pedaço quebrado do seu
cachimbo. Ou então um dente estragado. Avançou decidido em
golpeá-lo. Se possível, fatalmente. Os espectadores se agitavam no
ritmo da música de fundo aguardando o embate. O outro se contraiu
num gesto de defesa, acertando outra rabada no seu oponente.
Protegendo
os olhos com as mãos trêmulas, ouviu a saraivada de palmas que
soaram pelo salão em conhecimento pela sua admirável coragem.
Levantou a cabeça, incrédulo do reconhecimento que recebia. Uma
sereia toda cintilante e perfumada se aproximou dele e o beijou
demoradamente como a um herói. Foi um estrondo de alvoroço.
O
salão fervilhava.
Esquivou-se
do assédio da sereia e de outros admiradores circunstanciais,
sentindo que o pulso falhava.
Precisava
de ar, de líquido. Derramaram-lhe cerveja e caipirinhas no corpo
escamado. As guelras se contraíram com a acidez do álcool. Tinha
que correr. Tinha que se salvar. Não podia ter perdido tempo com
aqueles festejos desmedidos.
Seguiu
por um corredor estreito, iluminado por uma luz a ponto de se apagar,
onde um polvo musculoso estava grudado numa ostra miudinha. Um de
seus muitos tentáculos tentava alcançar a pérola preciosa.
A
música e as vozes foram diminuindo conforme ele avançava trôpego
pelo corredor, esbarrando nos casaizinhos mais insólitos que só
mesmo as profundezas marítimas poderiam proporcionar. Ou uma festa à
fantasia com tema marinho.
Entrou
no banheiro. Deparou-se com um plâncton e um mexilhão aspirando
areia branca. Estes notaram seus olhos esbugalhados e a boca crispada
em bico. Indicaram-lhe o mictório coletivo. Precipitou-se para o
local indicado. Parou, desapontado. Só havia gelo e bitucas de
cigarro. Procurou ao redor onde pudesse se banhar, se molhar.
Mergulhar.
Viu
alguma coisa pela fresta de uma portinhola que balançava
vagarosamente, rangendo, enferrujada.
Aproximou-se
com pressa. Escancarando a porta. A passagem. O portal. A privada
bege fosco cintilou suas águas calmas e amarelas. Aspirou
fortemente. Urina e fumaça. Fechou os olhos e se jogou, fazendo
respingar recendente cheiro salgado.
A
certa altura da madrugada, um pirata foi mijar. Abriu a porta
enferrujada do banheiro. Levantou a tampa da privada. Sempre
soluçante. E viu o corpo boiando de lado. Peixe morto. Afogado.
Ressentiu-se, contrariado: não era certo acabar a festa daquele
jeito.