segunda-feira, 1 de abril de 2013

Minha mãe é um peixe

 “Vardaman – Minha mãe é um peixe”1

Minha mãe é um peixe. É, um peixe. Daqueles que fazem gluglu com os beiços em bico pintados de batom vermelho. Minha vó que me disse. Sua mãe fede a peixe. Com aqueles olhos esbugalhados e aquela pele espessa e molhada parecendo escama. Então eu também sou um? Não, não meu filho. Você é diferente. Você é um bicho de outras águas. Quer dizer de aquário ou de rio? Mas ela me olhou com um sorriso idiota no meio da cara grande dela e foi embora me dando uns tapinhas no rosto e alisando minha cabeça. Que gesto besta – não falei. Vovó é legal. Ela diz coisas que não entendo. Tem as mãos sempre mornas e os dedos envelhecidos enrugados. Ela que disse que é velha. Me contou que um dia eu também vou ser. Velho. Só não sabe se vou ter as mãos quentes e os dedos velhos parecendo papel amassado. Igual ela. Também. Às vezes ela chora quando fala do vovô. Diz que ele agora é um peixe-frito, enlatado e enterrado debaixo da terra. Pra que enterrar um peixe – nasce em árvore? Ela responde sorrindo que é pra os peixes-vivos não se esqueceram do que espera eles. No fim do rio. Nas águas paradas. Mas água parada é de aquário. É lá que é o fim? Ela enxuga as lágrimas e passa na minha cara. Lambo um pouco. É salgado. Bacalhau é salgado, não é vó? Todos os anos a mãe faz ele mas só uma vez. Ela deixa ele nágua como um pano de prato sujo. É sim, meu filho, é sim. Sua mãe não sabe fazer ele direito se fica salgado. Hum fica gostoso – não falo. Ela se levanta e vai embora sem dizer nada. Ela sempre faz isso. Saí no meio das nossas conversas. Não termina de falar o que eu pergunto. Sua mãe, apesar de tudo, também é assim. Deve ser por isso que ela me odeia tanto. Vocês fazem um esforço tremendo para serem diferentes dos pais mas não adianta. Agem e são iguaizinhos a nós e por isso se revoltam e agem com arrogância. Eu também, vó – vou ser igual à mamãe? Mamãe chega, devagar, parece cansada. Me beija e vai para o banheiro. Vovó levanta, me dá um beijo e vai. Elas quase não se falam. Gosto de falar com elas. Papai disse que elas são as mulheres da minha vida. Que todo homem tem várias mulheres durante a vida. A mãe e avó, a esposa e a filha. Antes de ir embora ele me dizia que eu tinha que ser forte e cuidar delas. Que eu também era o homem delas. Que toda mulher tem vários homens durante a vida. O pai e o avô, o marido e o filho. Mamãe disse que ele tinha outra mulher. Ela era secreta e se chamava Amante. Nome estranho. Conheci ela algumas vezes. Me deu sorvete e foi legal comigo. Contei pra vovó e mamãe falou brava que eu deveria odiar ela. Aquela piranha! Vovó falou calma e paciente. Besteira, meu filho, besteira da sua mãe. Vó, Amante é peixe? Mamãe chamou ela de piranha – então ela é peixe também. As duas discutiram e vovó foi para casa dela antes de me responder. De novo. Os adultos gostam de fazer as mesmas coisas todos os dias. Sempre igual. Acho que é pra eles não se esquecerem. Mas no sábado e no domingo eles fazem outras coisas, só que essas outras coisas só são diferentes das que eles fazem durante os outros dias, porque são as mesmas coisas que eles fazem no sábado e no domingo. Eu também vou pra escola todo dia. Depois volto pra casa. Mamãe me leva. Vovó me busca, ficamos em casa. Mamãe entra. Vovó sai. Durmo. Acordo. Vou pra escola de novo. Mamão me leva. Vovó me busca. Fico em casa com ela até mamãe chegar. Só que no sábado e no domingo fico em casa. Ás vezes com a mamãe. Ás vezes com o papai e a Amante. Papai brigou comigo e disse que o nome dela era Amanda, não Amante. Foi mãe que disse. Disse também que Aman... que a Amanda é uma piranha. Posso ver os dentes afiados dela? Papai ficou bravo mas Amanda disse pra ele não brigar comigo. Que eu não tinha culpa, que era coisa da outrazinha. Outrazinha?! Quem é pai? Ele me leva pra casa e mal fala comigo. Mamãe diz que ainda não tá na hora e que é pra eu ficar com ele mais um pouco. Ele diz que não, que eu fui mal-educado. Que no próximo final de semana vem me buscar. Mamãe tá engraçada. Fala embolado e cuspindo. Fica indo de um lado pro outro. Se equilibrando num copo de vidro transparente. É vermelho bem escuro. Papai fecha cara. Pega minha mão e quer me levar de volta. Mamãe não deixa. Se enrola no pescoço dele e começa a chorar, baixinho. Acho que ela não quer que eu veja. Fico no meio dos dois. As lágrimas dela caindo em cima de mim. Elas têm um gosto estranho, meio ardido. E são pretas. Papai se mexe querendo se soltar mas ela segura firme. Não deixa escapar. Ele fica repetindo pra ela parar com isso, pra ela parar de fazer cena. Estamos num filme ou no teatro? – tomara que seja na televisão. Papai empurra ela com força e ela cai. Bate a cabeça com tudo no chão. Baque! Ela fica se mexendo de maneira estranha e dando pulinhos e virando pralá e pracá e respirando como um cavalo relincha. Parece um peixe vivo dentro de uma frigideira bem quente. Papai fica parado na porta. Amanda chega e dá um grito tapando o rosto com as mãos de unhas grandes e pintadas. São bonitas. Ela me puxa. Me abraça. Tenta cobrir os meus olhos. Vejo entre os dedos dela – a palma da mão é cheirosa, hum gostoso! – mamãe ficando quieta, se deitando toda no chão. Os braços estendidos e as pernas soltas. A boca fazendo um bico. Gluglu. Minha mãe é um peixe – não falo pra ninguém. O copo está quebrado todo em pedaços espalhados pelo chão. Os cabelos dela estão vermelhos bem escuro. Ela fica bem quieta. Não se mexe. Nenhum barulho. Dormiu com os olhos abertos igualzinho aos peixes dentro de um aquário. Tudo escuro.





1Willian Faulkner, Enquanto Agonizo.

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