quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Poema Fraternal

À memória de meu irmão Flavio

Só depois de um tempo
é que percebo que tudo foi um sonho

Eu e você a correr no meio da rua
a fazer algo que nunca fizemos juntos –
empinar pipa
Você me sorri
enquanto me vê correr
tentando colocar uma rabiola
numa pipa que voa baixo e que não sabemos de quem seja
Um carro passa – um susto -, quase me atropela
Você joga seu chinelo contra o carro
que segue rápido e some numa curva invisível
Nós dois sorrimos
Como é possível se a rua é reta?
Sorrimos e nos divertimos
Não percebo que só pode ser um sonho
Na vida real, enquanto você era vivo
não tenho lembranças de nós dois assim juntos
correndo, felizes, sorrindo

(Me lembro apenas de que, como uma mãe perdida em zelos, eu tinha um medo danado de que você nunca aprendesse a jogar bola e que, com isso, sofresse nas mãos dos outros garotos)

Quando dou por mim
estou no banheiro diante do espelho
É madrugada, acho
Tenho os olhos cheios de lágrimas
(você me sorria...)
Tudo, meu irmão, foi um sonho
apenas um sonho

O reflexo no espelho

é você, meu irmão
morto

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Silêncio


O que me resta
é me contentar com a ambiguidade do seu silêncio,
das suas poucas palavras
Logo eu, que me achava tão lacônico, soturno

A desilusão
é saber que o seu silêncio é só isso:
não a ausência óbvia de palavras,
mas tão somente silêncio,
sem camadas de sentidos ocultos,
sem sombras metaforizadas,
sem entrelinhas enviesadas

Talvez até seja o signo ainda incompreendido, por mim,
de um sentimento mais ameno ou até mesmo mais amargo

Você bem me conhece, sabe o quanto é inevitável
essas minhas armadilhas verbais, essas divagações

Eu levanto os olhos do papel onde escrevo
(outra mentira: escrevo direto na tela do celular ou do computador)
e procuro seu rosto, uma imagem sua, uma lembrança...
Mas o silêncio (de novo ele), o silêncio é como uma assombração
presente em  cada recanto de uma casa onde você nunca esteve
Isso me provoca delírios, e fico cheio de esperanças

No entanto, sei que estou sombrio, e que a doença é mais que um simples e pretensioso verso

Tudo bem, não precisa dizer nada
(como se eu conseguisse fazer você falar, ou como se eu merecesse ter em meus ouvidos sua voz a me dizer qualquer coisa)

Ainda estou absorto nesse exílio de mudez e palavras - seu olhar

II

Vou fazer desse seu silêncio algo que eu não soube ou não fui capaz de fazer de mim                                                                                                                                      [mesmo
de nós:
um ponto singular no Universo
onde não há nada de mais
do que a latente possibilidade
de uma voz se expandir
e (me) dizer
oi
ou dessa mesma voz
se contrair
e apenas (me) sorrir
um sorriso mudo
sincero
um apelo carinhoso
de que eu não diga mais nada
e fique quieto
a ouvir esse silêncio que há em mim
e que é você
a sua voz
eu sei

No
ar
partículas imóveis
mas eu sei
posso ouvir
você
aqui

comigo

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Um Escritor - Parte I

afastar móveis, ajeitar-se na cadeira, balançar as pernas e tamborilar com os dedos – ele sabe que todos os esses gestos e movimentos são uma tentativa desesperada de atribuir um rito a algo que já não tem nada de ritual: sentar-se e escrever, ou melhor dizendo, sentar-se para escrever.

a luz da lâmpada logo acima de sua cabeça reflete direto na tela do computador. isso o irrita. tira sua concentração. o faz achar que sua falta de criatividade provem dessa mera luz opaca, amarela a se dissipar pelo espaço pequeno de um quarto, não de um escritor, mas de um alguém que pretende ser um. ainda que, para esse alguém, ser um escritor seja só uma ideia vaga e obscura na qual pretende se agarrar até que tenha desperdiçado todos os anos de sua vida em coisas e pessoas desmerecedoras de toda sua dedicação. isso é o que ele acha, o que ele pensa. não necessariamente a irrefutável verdade única dos fatos.

nem bem escreveu umas poucas palavras já se vê agoniado imaginando de onde tirar tantas outras palavras para preencher páginas e páginas em branco. esse branco intransponível. frágil, perturbador de uma folha (tela) que parece esperar com indiferença que seja lançada sobre ela tudo aquilo que a humanidade de alguma maneira perseverou para conseguir exprimir e que, agora, encontra-se em perigo de extinção pela falta de aptidão de um escritor incipiente.

imagem deplorável, digna de pena, a de um escritor lutando, quixotescamente, contra um paredão intacto, límpido. arrematando contra ele palavras, frases, parágrafos como se fosse tão eficientes e belicosos quanto espadas de lâmina afiada.


o que pode um escritor. nada, absolutamente nada. além de escrever e se resignar à volúpia das palavras. entregar-se a frases de efeito com a mesma ingenuidade louca de perpetuamento da espécie com que alguns animais se lançam às garras de um predador acreditando estar se lançando para o abismo da gratidão, da fama por parte de seus pares. um escritor não sabe mais do que seus escritos podem dizer. e, se ele não consegue abarcar em suas obras toda a complexidade de seu próprio espírito, de sua própria alma, ele deve perecer e ser execrado por aqueles que, ainda que não possam fazer o mesmo, tem o dever de julgá-lo impiedosamente por ter se atrevido à empresa tão árdua.

não se deve deixar seduzir pelos elogios vazios, pelas teses acadêmicas, pelos artigos laudatórios; pelos risinhos toscos em reuniões com leitores e editores; não se deve se rebaixar pela influência mercadológica de livreiros; não se deve frequentar livrarias esperando ser reconhecido, nem muitos menos assediado; não deixe que esse mundo de vãs expectativas transformem as suas em estatísticas de vendas e projeções de mercado; faça somente o que não for possível deixar de fazer, mas faça com a certeza alegre de estar fazendo por convicção e vontade e não por imposição ou medo.

arrependa-se do que escrever quando soar dogmático, categórico. abstenha-se dos efeitos de conselhos pretensamente sábios. os paradoxos, as contradições, as incongruências – esses sim, são princípios pelos quais você deve encaminhar sua escrita. se te impedem forças estranhas, forças externas a você, lute, resista, mas saiba que, em pouco, até suas palavras serão restos de uma civilização há muito perdida.

a humanidade de um escritor está onde ele menos espera. não está no cinismo cético de ditos satíricos (mas também aí pode estar); não está no deleite de trechos poéticos, sintaticamente perfeitos (mas também aí pode estar); não está nos silêncios e omissões. conscientes ou não (mas também aí pode estar);  não está sequer naquilo que ele acredita ser o principal motivo de sua vida.

há escritores na humanidade (e já houve muitos, e muitos ainda estarão por vir) mas eles não são humanos. mas não se pense que eles possam ser, então, de natureza extraterrena. também não o são. os escritores são para a humanidade o mesmo que as palavras são para os escritores. expressam tudo o que se possa compreender da experiência humana e da existência, mas no fundo, são absolutamente dispensáveis.

eles costumam se supervalorizar em detrimento da consciência mediana da maioria das pessoas. são covardes, pretensos. seres escorregadios, obtusos. omitem-se em declarações ditas e escritas por seus personagens. – essas aberrações externalizadas de seu mundo interior, não necessariamente íntimo. são falsos, mesquinhos. divertem-se com jogos de palavras e sentenças ambíguas. se odeiam, e invejam-se com orgulho. vivem dos esforços alheios. suas obras, seus livros são embustes para atrair leitores desesperados por lerem algo que eles acreditam ser um reflexo fiel (e melhor acabado) de suas próprias experiências. como se isso fosse possível. como se as palavras pudessem, de alguma forma extraordinária, conjugar uma ou mais experiências de vidas totalmente díspares em poucas linhas encadernadas em letras legíveis e diagramação agradável.

desconfie de um escritor que se mostre como um ser à parte ao mundo ao seu redor. ele fará de tudo para convencê-lo de que não há em seus escritos o menor resquício passível de acusação de subjetivação da realidade através de seu mundo psíquico. mas também desconfie de um escritor que tente provar exatamente o contrário. nenhum escritor é digno de confiança, por mais que nos entretemos com suas obras, com seus enredos mirabolantes, com seus finais inesperados.

Continua...

A Um Escritor - Parte II

...Continuação

ele para, pensa, reler o que já escreveu até ali, satisfeito do resultado. na verdade, sabe muito bem que terá que prosseguir por uma via tortuosa, cheia de atalhos falsos, becos sem saída, bifurcações ilusórias. já desapontado, ele sabe que tudo isso não passa da realização exata do que ele considera ser um fracasso. pois para poder escrever terá que superar o próprio ato da escrita. e ele não sabe como fazer isso. já leu tantos livros, tantos ensaios de outros que, ele ao menos acredita, passaram e superaram esses mesmos desafios pelos quais ele está passando agora. ele lembra de um artífice óbvio, que quase sempre dar certo: escrever sobre a dificuldade de escrever, ou seja, fingir que está escrevendo algo quando o que se está realmente fazendo é valendo-se das palavras para combatê-las. não se está expressando nada – está-se, isso sim, travando uma batalha ingloriosa.

o seu orgulho provém dessa certeza cabal de que irão admirá-lo por sua destreza. por sua persistência em fazer deitar essas coisas flutuantes em papel estático, impresso. o que seria de um escritor se não fosse essa ilusão... sua ilusão de vencer sempre as palavras, quando estas, senhoras soberanas em seu reino de mudez, alinham-se sucessivamente no texto causando a ilusão de se estar lendo o que se pretendeu escrever.

elas não dizem nada. um escritor não tem nada a dizer. sua voz é tão rouca quanto à das outras pessoas, seja ele um escritor dito experiente ou novo. seu estilo, sua prosódia, meros efeitos de uma retórica acadêmica. arrancai cada palavra, uma por uma, de um texto do mais celebre escritor, e verá que não passam de artefatos fossilizados, de um maquinário engenhosamente arquitetado mas, simplesmente, carente de qualquer sentido em si mesmo. as palavras nada dizem. são só os ouvidos humanos que são suscetíveis demais às vibrações de partículas sonoras em atrito com o ar. e o cérebro humano encarrega-se de lhes atribuir sentido, os sentidos aos quais ele já está acostumado.

cena deplorável a de um pretenso escritor prostrado diante de meras palavras irrequietas, prenhes de sentidos ambíguos, de imagens difusas sem objetos definidos. ele vai parar. vai desistir. de tudo o que tinha pensado em escrever, só lhe restam essas mal traçadas linhas. perdeu-se em seu próprio turbilhão de ideias. perdeu-se entre seus pensamentos e os pensamentos dos escritores fantasmas que o antecederam. tinha pensado em tantas coisas, em tantas tramas entre personagens intrigantes interagindo entre em si, mas acabou aí, diante de um texto sem nexo, sem substância, de uma espécie barata de monólogo interior sobre o ato da escrita, um arremedo de reflexão metalinguística à maneira daqueles que ele tanto admira. por que será que todo escritor se acha digno de pena quando falha, quando vê seus esforços exauridos depois de horas e horas de reflexão e escolhas das melhores frases, dos melhores trechos, da melhor forma de compor um texto – tudo isso para não dizer nada, tudo isso para disfarçar seu desespero, sua mesquinhez e insignificância perante o mundo. de onde ele acha originar-se esse direito da humanidade se compadecer de seu insucesso, de sua derrota incontestável e absoluta. de onde provem essa ilusão de ser devidamente compreendido.

já consciente de sua derrota, ele vai salvar o arquivo e esquecê-lo por um tempo, agarrando-se com todas as garras à esperança de que o tempo, somente o tempo, esse agente secreto que se infiltra em todos as coisas inanimadas e viventes para dotá-las de alguma significação, vida e morte, – de que o tempo possa torná-lo mais compreensível com o que escreveu nessa data quando lê-lo daqui a alguns dias, ou anos, e perceber, nostálgico, o quanto ele terá mudado e como, mais uma vez, ele falhou e se rendeu ao encanto perigoso de tais palavras. sempre elas – as palavras.