segunda-feira, 19 de setembro de 2016

MOEMA


Moema veio se arrastando. Os passos pesados e dissonantes, afundando pedras e arrancando asfalto. Caminhava devagar, talvez pelas dimensões corporais. Trinta e dois metros de altura, apesar da estreiteza do corpo. Os braços longos e finos. As pernas fortes e grandes. Os cabelos a encobrir-lhe os olhos marejados.

Atraiu a curiosidade dos circunstantes mais pelo modo encurvado e lento com que vinha caminhando do que pelas mãos sangrentas fechadas em concha.

A enxurrada de suor, que as pessoas julgavam escorrer pelo seu rosto, era na verdade a substância salina do seu sofrimento.

Por onde passava, abstraída na própria dor da caminhada, tentavam chamar-lhe a atenção, acenando braços e bandeiras e obstando-lhe a passagem com obstáculos grosseiros e fáceis de serem cruzados. Alguns, tocados pela peregrinação da criatura colossal, ofereciam-lhe água e alimentos, arremessando-os em direção à grande boca e vendo-os absorver na textura cinza da pele. O organismo de Moema os absorvia sem que ela precisasse parar por um só momento que fosse.

Seguia pelas estradas, rodoviárias, oceanos e mares, cânions e florestas, vales e montanhas, contrita na peregrinação que lhe impusera. Nunca respondia às perguntas, deixando oculto o objeto de sua missão e aumentando a curiosidade alheia de pessoas e Estados. Como medida meramente preventiva, diziam alguns chefes de estado, era-lhe proibida a passagem por este ou aquele território nacional, já que se omitia a revelar as suas reais intenções. Como não entendesse a linguagem humana, ou os artifícios retóricos de tais discursos, excedia os limites de uma fronteira qualquer e logo era submetida a perseguições e acusações ferrenhas e bélicas. Cientes do fracasso de tais investidas, os agressores mantinham os ataques até que a invasora abandonasse a federação, com buracos, pólvoras e arranhões pela extensão corporal.

Nos lugares mais amistosos e receptivos, reparavam-lhe as feridas e os machucados, fazendo-lhe curativos ineficazes nas cicatrizes. Davam-lhe alimentos diversos e rações, e a banhavam com a ajuda de escadas e esfregões ou com mangueiras de bombeiros. Saia desses lugares carregada de fotos, imagens, pulseiras, perfumes, presentes, bilhetes e oferendas pregados nos calcanhares, tornozelos, canelas e costas.

Moema já caminhava ininterruptamente há décadas, sempre vagarosa e encurvada com as mãos fechadas em concha, abalando o terreno com as passadas violentas. Os que tentavam lhe desvendar os segredos dos olhos ou o flagelo das mãos eram esmagados com indiferença pelas toneladas de suas pisadas ou pelos repelões dos seus braços ferozes. Deixem ela em paz, gritavam os que se compadeciam dela e os que se afligiam com os que a importunavam.

Ela caminhou tanto e tão obstinadamente que ultrapassou os limites terrestres sendo observada pelas lentes atentas de satélites estrangeiros.

Séculos depois, tendo sido vigiada constantemente, chegou à Terra as imagens de seu paradeiro: no ponto mais alto de um planeta montanhoso Moema depositou, chorosa e maternal, o ninho de coroas de espinhos com o feto deformado entre dois testículos enrugados. Naquele exato momento, enquanto viam aquela transmissão, alguns desviaram os olhos, abismados — a expressão de profundo espanto. Outros se felicitaram com a descoberta de um novo planeta que abria novas perspectivas para a exploração interplanetária. Mas todos eles sentiram com incomodo um grande vazio se expandir dentro de cada um.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

24 HORAS - PARTE I


Clarice abre os olhos. Acorda. É um novo dia. Outro dia. “Mas o que é um dia?”
Um dia é o tempo que a Terra leva para dar uma volta completa ao redor do Sol, como se ela fosse uma bailarina rodopiando em volta dele, seu companheiro amarelo, laranja, imenso, enquanto a gente faz um monte de coisas e nem percebe o rodopiar da Terra, o movimento do tempo se deslocando com o espaço.
A gente acorda. Abre os olhos, se espreguiça. Ainda sonolentos, a gente se levanta, escova os dentes, lava o rosto. Toma café. Vai para escola, para o trabalho, para lugar nenhum, ou fica em casa e volta a se deitar.
“Levanta logo, menina!”
A mãe chama, ela lembra o galo despertando todo dia de manhãzinha, obrigando a gente despertar do sono gostoso, daquela preguiça manhosa.
“Ai... que sono”,  a menina boceja.

A mãe, o galo e o despertador anunciam que já chegou o dia. O Sol já se pôs lá no alto. É hora de se levantar.
“Onde o Sol se põe? Será debaixo da cama...”
Só os chinelos e as pantufas com cabeça de animais. Pela janela, pelos buracos da janela, os primeiros raios de sol entram no quarto de Clarice, aquecem os pés dela, fazem sombras nos móveis e no rosto dela encoberto pelos cabelos negros. Alguns raios se lançam direto para debaixo do tapete ou para um canto do quarto onde se perdem. Algumas sombras são engraçadas, lembram monstros ou formas geométricas.
“Será hoje a aula de matemática? Na dúvida, melhor levar o livro.”
Os livros, tantos livros. O peso da mochila e a postura encurvada. Todo aquele conhecimento... Ela tem que se esforçar, resistir.
“Saber as coisas pesa assim, é?”
“Antes não saber nada, e ser livre para voar...”
“Veja só: o conhecimento é tão complexo quanto às asas de uma borboleta. Mas, do mesmo jeito que estas, o conhecimento pode fazê-lo (ensiná-lo) voar livremente, por muitos lugares desconhecidos e interessantes. Se você pensar assim, todo esse Saber se torna leve como as asas de uma borboleta.”
Clarice lê a primeira página de um dos livros. Olha o céu no horizonte. Toda aquela imensidão sem fim. Cinza-azul.
“Quer dizer, o céu, apesar de estar lá em cima, é terreno porque faz parte da Natureza da Terra. E a Terra faz parte do Espaço. O Cosmos. Aquela infinidade de silêncio, escuridão, estrelas, galáxias, poeira cósmica. E nós?” Sozinhos, no mundo.
“No nosso mundo, no nosso planeta pálido ponto azul na vastidão do espaço...”

Clarice olha em volta e já está na sala de aula. Os outros alunos e o professor observam atentamente a expressão dela.
“No mundo da Lua, Clarice?”
“Ahn... não... Quer dizer, só pensando...”
Os alunos riem, e o professor continua sua explicação sobre as borboletas. As fases: 1º lagarta, 2º crisálida, 3º borboleta. A metamorfose, que quer dizer a transformação da forma, por que passam esses seres vivos antes de se tornarem o que são.
Clarice pensa em si mesma, no seu corpo, que é ela mas ao tempo não é. Ela pensa em como está mudando, em como seus pensamentos agora são outros. Ela já não se interessa mais pelas mesmas coisas de antigamente. Antes, ela apenas estava ali, no mundo, com outras pessoas, animais, coisas e objetos, e nem passava pela sua cabeça sobre ela estar ali. Agora, Clarice quer saber mais dela mesma, do seu corpo, do mundo, de um monte coisas a sua volta.
“Quanto mais se aprende, mais as dúvidas aumentam...”
Onde será que ela estava quando não pensava sobre estar onde estava? A gente já existia antes mesmo de nascer? Ser alguém é ser o quê? E quando a gente sabe, porque sente, que tem algo em nós que a gente não saber dizer de onde vem, de onde é e o que é? E aquela sensação, sem um sentimento muito bem definido, a apertar o nosso peito mesmo estando rodeados de amigos, nos fazendo nos sentir sozinhos, abandonados?

24 HORAS - PARTE II


Ela volta a prestar atenção na aula. O professor continua falando sobre as borboletas. Sobre o longo tempo entre o primeiro e o segundo estágios necessários para que a borboleta se transforme no que é. Depois, ela vive vinte 24 horas, um dia, e morre, quem sabe se perguntando se ela viveria por mais longos anos...

“Só que esse questionamento sobre a brevidade da existência é coisa da nossa espécie humana. Não se iludam quanto a isso, ok?”

“Coisa da nossa espécie...?”, Clarice pergunta com voz tão baixa que ninguém escuta. Mas sua intenção era essa mesma, que ninguém escutasse, porque, de alguma forma, Clarice sabe que ninguém saberá ao certo responder a essa pergunta.

Um pouco triste, ela folheia o livro de Biologia e vai se alegrando aos poucos, conforme vê a diversidade de cores e formas das borboletas. Umas têm asas tão coloridas e com desenhos enigmáticos. Outras parecem ter olhos bem grandes e negros contornados por um azul fraquinho nas asas. Asas abertas, estas parecem dois olhos enormes. E quando a borboleta bate as asas deve parecer olhos piscando. “Assim:...”

Clarice fecha os olhos e quando os abre novamente, ela já está em casa. Deitada. O dia já passou. O Sol já se foi. Borboletas nasceram, cresceram e morreram. Antes, voaram e voaram muito por aí, pelos ares, pelo céu. Entrando em flores e sugando néctar. Arranjando pares. Fugindo de caçadores. Se aventurando, vivendo e... finalmente, morrendo.

“Elas têm sangue? Será que sabem quando estão morrendo? Se não, como explicar essa pressa em viver e fazer tantas coisas...?”

A menina sente algo frio, muito frio, vindo lá de dentro dela, bem do fundo do seu ser. Fica quieta, parada, apreensiva. Sente algo escorrendo entre suas pernas. É algo líquido. É gelado, muito gelado. É vermelho. O chão fica tingindo de vermelho como o céu quando está no fim de tarde. Clarice tem vontade chorar, de gritar, de pedir socorro. Mas sabe que não há dor, só sofrimento, e ela completamente só no seu quarto.
Ela se levanta, vai até a janela. Abre. E os raios de Sol invadem o seu quarto numa explosão amarela e quente. Clarice sorri, cega de luz. Bate os braços como se fossem asas e pousa na cama como se fosse uma borboleta despertando para o instante eterno e perfeito que só durará 24 horas.