terça-feira, 29 de novembro de 2022

_mArtE uM :: uMa joRnada nOs AfeTos

No filme Marte Um vivenciamos a história de uma família negra que vive na periferia de Belo Horizonte - MG. 

A mãe, Tércia, é empregada doméstica, diarista, personagem emblemática da nossa sociedade de passado escravagista. Tércia é personagem com profundidade própria, individual e, ao mesmo tempo, personifica milhares de mulheres negras, como a minha mãe, que sempre estiverem presentes nos lares familiares ajudando a construir a vida social e dos afetos desse país, mesmo não tendo o mais que merecido reconhecimento tanto em termos pessoais, profissionais e sociais.

O pai, Wellington, zelador/jardineiro num condomínio de gente rica, rica em termos de dinheiro e só, é também um tipo muito bem conhecido em algumas famílias periféricas, já que costuma ser muito mais raro vermos uma figura paterna nesses contextos. Wellington até é um pai trabalhador, dedicado, afetivo, apesar disso, é marcado por uma existência de valores morais retrógradas e rígidos, Já que se mostra não atuante nos afazeres domésticos, é preconceituoso com a sexualidade da própria filha e, assim como milhares de homens Brasil afora, sofre os percalços de ter que conviver com um vício muito característico da nossa realidade: o alcoolismo.

A filha mais velha é Eunice, bolsista numa universidade federal de direito. E está naquela fase em que os valores familiares entrem em choque com a realidade de uma identidade conflituosa em construção. Ela quer ser independente mas sem perder os vínculos com a família. Quer assumir sua sexualidade sem que isso gere atritos no âmbito familiar. Gosta de Joana mas não se sente à vontade em manifestar publicamente todo seu afeto pela amada. Eunice está naquela fase de transição entre o fim da adolescência e começo da vida adulta. Uma fase de incertezas, impasses, mas também de ímpetos sonhadores e libertadores. 

E temos ainda Deivinho, o filho mais novo, habilidoso e admirador de futebol, principalmente por influência paterna, cujo sonho maior é ser um astrofísico. Ele é criativo, curioso, hábil, introspectivo, adoro ver vídeos de astronomia, do Neyl Degrasse Tyson, e sonha em um dia ser um dos tripulantes da missão que pretende levar os primeiros humanos para colonizarem Marte.

Todos na família tem seus sonhos, seus medos, frustrações, anseios, desafetos, e vão sendo afetados pouco a pouco pela História política do país após a ascensão de um governo de extrema direita. Qualquer paralelo com a realidade atual (não) é mera coincidência.

Uma história sensível, tão única e particular ao retratar os percalços de uma família negra vivendo numa periferia de um estado fora do eixo rio-são paulo, mas é também uma história que nos toca pela sua universalidade ao tratar de temas caros a qualquer ser humano em qualquer perto do mundo.

Do escuro espacial de uma sala de cinema, ao acompanhar as desventuras dessas pessoas, somos convidados a uma imersão humana, cósmica até eu diria. Sofremos e vibramos com cada momento dramático ou trágico-cômico dessa jornada. A jornada de sermos os primeiros humanos a chegar a um destino tão distante que, vista de lá, a Terra nos parece menos que um "pálido ponto azul". Fomos e seremos pioneiros, sempre fomos, desde que nossos ancestrais começaram a desbravar esse planeta.

Essa será uma jornada sem volta. Tocante, emocionante, da qual certamente você não vai querer voltar. Marte Um - uma jornada nos afetos.


sábado, 24 de setembro de 2022

Fazes-me falta

Fazes-me falta, miúda

Tua presença ausência

Se faz sentir por toda a casa

Por todo canto no mundo

Para onde olho e não te vejo


Há um silêncio absoluto

Crescendo dentro de mim

Na mesma velocidade 

Com que galáxias

E estrelas 

Se expandem universo afora


Falas comigo e já não sou capaz de te ouvir

Ofereces-me tuas mãos sem substância

E tua boca sem brilho

E já não sou capaz de tocá-las

Ou sentir o cheiro da tua pele


Fazes-me falta

Porque tua ausência onipresente

Em todo lugar

Dentro de mim

Se projeta sombra sem corpo

Encobrindo de solidão meu ser tão frágil


Havia algo em ti que me pertencia

Uma semente informe evoluindo aos poucos

Negrume sem lume

Vazio uterino de dilatações exponenciais

A lógica retórica de uma recusa disfarçada


A vida esvaziada 

De todo sentido de existência

Afeto feito fel 

Derramando pensamentos desencontrados

Choros contidos de olhos fechados


Fazes-me falta e não te vejo

Evito espelhos por me lembrarem a imagem

De um homem 

Sem jeito para as coisas práticas


Era tu, miúda, que me vestia 

Para os rituais banais da vida cotidiana

Que me dizia a melhor combinação

Entre sapatos calças e camisas

Gravatas e meias...


Agora abro o guarda-roupas

Entre cabides em sentinela

Eu vejo um monstro indistinto

Visto-me sem convicção

Lembrando tuas palavras afiadas


Fazes-me falta

E nem mesmo a dor saudade

De ti

Me cabe mais no peito


Morrer, pequena, é deixar de sentir

E eu ainda te sinto

Ainda que não estejas mais aqui 

sábado, 6 de agosto de 2022

Poetas roubam

Otto, os poetas roubam

Roubam tudo que é poesia

Eles roubam a luz da manhã

E do sol da tarde que arde fria


Os poetas roubam

Eles não sabem criar

São crianças imersas

Em palavras diversas

De versos e rimas

Poetas roubam

Esse é seu jeito de brincar


Os poetas roubam 

Suspiros apaixonados

E o choro convulso

De quem se desespera

E guardam tudo em suas memórias confusas

Escrevem como se sentissem

E sentem o que não escrevem


Nunca confie num poeta, Otto

Poetas roubam

E a poesia não passa de uma coleção

De objetos e artefatos alheios


Poetas roubam

Aquele beijo doce

Roubam

Aquele grito amargo

Roubam

Aquele riso frouxo

Roubam

Aquele triste fado


Suas palavras versam sobre a Vida e a Morte -

Esta lida contínua entre a sobrevivência e a plenitude

Eles clamam "Viver é eterno!

Mas amar, amar dura só um instante"


O verso encobre a tragédia do existir

Viver sempre foi um exercício

Um jogo de amarelinha, não é mesmo Horácio

Uma brincadeira à beira do Grande Abismo

Ainda que houvesse Céu e Inferno

Entre eles também haveria de ter 

muitos passos, muitas casas

Atirar uma pedra em rumo delas

é jogar-se no mundo e se arriscar

Poucos sabem ignorar a máxima suprema -

Viver é muito perigoso


Ouve! Escuta! Repara nestes versos...

É assim que eles nos roubam, Otto

Distraídos, rimam, versam, nos hipnopoetizam

Poetas... roubam