Borboletas
Negras
Sempre
desconfiei do
que poderia ter atrás dessas paredes. Extensas e frias, pálidas
como o destino humano. Porém, nunca tive coragem suficiente para
derrubá-las, ou pelo menos fazer um buraquinho pelo qual fosse
possível encaixar um único olho e entrever a escuridão do outro
lado. Mas sempre senti certo receio, quase um pudor doentio. Ainda
mais depois que soube daquela história
de um homem que
teria matado a própria mulher e enterrado ela num desses esquifes
verticais de concreto. O que ele não esperava era que um bichano,
negro e astuto, ronronante como a cínica da Justiça, revelasse seu
segredo fúnebre.
Não
que eu ache que possa haver um defunto encurralado entre essas
paredes. Mas sinto que só eu posso desempenhar o papel do gato negro
dissimulado, e desvendar para mim mesmo o que pode estar emparedado
aí atrás.
Ás
vezes, com os ouvidos grudados às paredes, passo horas ouvindo
ruídos incertos, sem cores e sem vozes, através delas. Fico na
expectativa ao ouvir um TUM-TUM tão familiar, e logo descubro que
são apenas os batimentos do meu coração que me falam aos ouvidos.
TUM-TUM...
TUNTUM... TUM-TUM – soa a escuridão do outro lado.
Me
viro, apreensivo, contra as paredes, com medo de que algo possa vir
me buscar.
Olho
para teto, procurando um abrigo, e vejo a luz pendurada como aqueles
cadáveres antigos
numa
forca. Lá em cima também deve haver alguma coisa que eu, de algum
modo, pressinto. Talvez pensamentos sem ideias,
ou colônias de cupins explorando uns aos outros.
Ou
átomos, em constante atrito, se deteriorando ou se solidificando em
massa e cimento. Ossos e suor.
Escuridão...
Não
gosto dessas paredes, desses blocos de concreto dispostos um ao lado
do outro, um na frente do outro, formando biombos protetores mas que
também nos encurralam, nos sufocam e aprisionam. Mantendo em sigilo
cenas de amor e desprezo, afeto e vingança, imagens do cotidiano que
muitos dissimulam abominar nas notícias sórdidas e bizarras,
estúpidas e banais. – O espanto hipócrita de uma sociedade que se
autoflagela.
O
espaço entre espaços... No espaço as paredes infinitamente
grandiosas são tão negras e salpicadas de estrelas, planetas,
galáxias, corpos celestes e astrais, são tão voláteis e
revestidas de um silêncio absoluto, que é possível atravessá-las
e descobrir outras dimensões porque nossos corpos rasgam fissuras na
malha negra do Universo.
Talvez
eu consiga transpor esses muros domésticos e descubra mundos
desconhecidos, astronautas indigentes, satélites naturais, seres
translúcidos ou um
deus encurralado como um menino traquina tentando se enfiar entre um
vão mínimo. Ficaria preso junto com ele, sentindo a frialdade dos
blocos na superfície da pele. E de repente nossos pelos se
desprenderiam, nossa pele se enrugaria e ficaria espessa e grossa, e
seríamos lagartos escalando paredes e fugindo de preces e pedras.
Uma
teia de aranha.
Nunca
tinha percebida aquela teia de aranha, ali, naquele canto do teto.
Não sei se é um buraco bem pequeno ou uma aranha bem preta e
compacta aquela mancha. Pode ser um portal. Ouvi dizer que existem
muitos portais espalhados pelo mundo todo e de diversas formas. Mas é
melhor eu ter cuidado. Já me enganei uma vez sobre eles quando quase
me afoguei na privada de um banheiro publico ao achar que o corpo que
boiava calmo e pulsante sobre as águas sanitárias era um sinal, um
convite para atravessar um portal. Merda. O mundo que conheci tinha
muita merda. Um cheiro e um gosto fortíssimos de urina. Planeta
Ureia
com seu solo rochoso de bolos fecais.
Me
aproximo devagar da teia. Ela é grande e está cheia de pó. É
possível ver uns finíssimos fios de seda pendurados e descosturados
dos demais. Esqueleto, vejo os restos de algum bicho, só a carcaça
da cabeça ainda envolta num véu sufocante e mortal. Podiam ser meus
aqueles restos de presa. Podiam ser meus os restos mortais que
acharam na tumba de um faraó.
Ou
minha, a dentadura de bronze que acharam entre os escombros de uma
antiga
civilização, ou meu, o crânio daquele que pode ser o ancestral
mais
antigo
da nossa espécie.
agora,
aquelas patas tão finas e pequenas, com uma pelugem negra saindo
do...
da... saindo do... buraco... do abdômen... da aranha... antenas e
asas...
uma
três nove milhares de borboletas negras tornando escuro tudo ao
redor.
polemizando
poeira cósmica e agitando o ar abafado.
pego
uma em minhas mãos, enquanto outras me rodeiam e me sobrevoam,
num
envolvente voo de escuridão. meus olhos vão se aprofundando numa
perspectiva
em espiral. vou sendo carregado e envolvido freneticamente.
atravesso
rajadas cintilantes e objetos que passam por mim tão rápidos que
nem
tenho certeza se estou realmente em movimento. ao fundo, uma forma
sólida,
concreta, se dissolvendo em fiapos multicoloridos. estou em rota de
colisão
com ela. o vento açoita meus pensamentos e eu só penso na viagem
de
ser uma aranha com asas de borboleta. a agilidade e frieza de uma,
com a
crueldade
e a beleza da outra.
A
vida tecendo seu destino tão obstinadamente. e sendo arrebatada sem
nunca ter sentido o espasmo de um gozo amoroso.
as
paredes que mantém em sigilo os segredos que nos doem. cada
borboleta traz consigo uma expressão de sentimento e emoção. nas
asas de uma, vejo os olhos grandes e maliciosos de alguém que eu
amei e que se foi entre o vão entre os espaços. estou dentro das
paredes que tanto temi e que, agora, me confortam como um abismo
perdido na extensão do espaço vazio.
estou
mais perto do gozo
mais
perto do fosso
mais
perto do parto
vejo
a luz da saída
na
vagina do mundo
borboletas
furiosas
negras
de cio