quinta-feira, 29 de junho de 2017

No nosso Deserto

quero me perder no teu deserto
no deserto do teu corpo
nas dunas do teu dorso
quero me afogar nas areias dos teus cabelos
que as carícias das tuas mãos
me açoitem com a fúria de uma tempestade
que  o silêncio entre nós
nos deixe ouvir
“os ruídos das estrelas”

Quando fores embora
e me deixar sozinha no vazio
me sentirei obrigada a ir em busca de nós
no deserto
a recolher memórias
como um arqueólogo de afetos
Talvez me vejas num take esquecido
dos teus filmes
a vagar por um mundo de poeira calor e frio
sedenta do companheiro de viagem perdido
e com olhos carregados de solidão e desejo
a estender os braços para tocar o teu rosto –
uma miragem de fato e gravata
no meu deserto


Um relato de viagem; um texto autobiográfico; uma história de aventuras e situações anedóticas; uma história de amor e sobre a impossibilidade do mesmo; sobre a fragilidade e grandiosidade da vida diante da vastidão desértica da Natureza, do Universo; apenas uma singela homenagem; ou até mesmo um relato de arrependimento por algo que não se fez... Ou tudo isso, ou nada disso, e somente o eficiente efeito de um recurso ficcional, onde traços biográficos reais se mesclam de forma praticamente indistinta de acontecimentos ficcionais.

A verdade é que No Teu Deserto, do escritor português Miguel Sousa Tavares, é um desses preciosos livros em que, a despeito de um texto despretensioso, deparamo-nos com um belo e poético “relato” do encontro e desencontro entre duas pessoas durante a viagem delas para o deserto do Saara (personagem este que pode ser entendido como uma metáfora da desolada condição humana).

Entre em contato com seu agente de viagem ou procure uma agência de viagem, e solicite um pacote para o Deserto do Saara. Perante o silêncio aturdido do atendente, diga, da maneira mais calma e despreocupada possível, sobre seu intuito com tal viagem: provar, experimentar e ler a mesma experiência narrada por Miguel (autor/personagem) em sua viagem para esse destino, na qual ele conhece Cláudia.

“Esta história que vou contar passou-se há vinte anos. Passou-se comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós, que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fi na camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.” – No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares, página 9, Editora Companhia das Letras, 2009



quarta-feira, 28 de junho de 2017

A Literatura como uma Orgia Perpétua

Não há tragédia maior do que terminar um livro com a expressão de indiferença, da mesma maneira que um autor poder ter ao compor uma obra que, no fim, não lhe desperta nada.

Se você já leu um livro de Literatura na sua vida e, simplesmente, não sentiu nada pelo o que estava lendo, então esquece, desista, você não é um leitor de ficção de literatura e, provavelmente, não entenderia toda emoção e comoção envolvidas no livro A Orgia Perpétua do escritor peruano Mario Vargas Llosa.
A obra é uma análise minuciosa e apaixonada, em um texto envolvente, rigoroso, “fluído”; um relato, um testemunho pessoal do autor/leitor sobre seu contato/leitura desse que é um dos livros mais emblemáticos da literatura ocidental – Madame Bovary.
Mario Vargas Llosa dividiu o livro, basicamente, em duas grandes partes, compostas por vários tópicos-perguntas a respeito da gênese da obra do escritor francês.
Na primeira delas, Mario nos conta, com um entusiasmo incontido, como se deu seu primeiro contato com a obra de Flaubert:

“No verão de 1959, cheguei a Paris com pouco dinheiro e a promessa de uma bolsa. Uma das primeiras coisas que fiz foi comprar, numa biblioteca do Quartier Latin, um exemplar de Madame Bovary na edição dos Clássicos Garnier. Comecei a ler nessa mesma tarde, num quartinho do hotel Wetter, nas imediações do Museu de Cluny. Aí começa de fato a minha história. Desde as primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo. À medida que avançava a tarde, caía a noite, apontava o alvorecer, era mais eficiente o transbordamento mágico, a substituição do mundo real pelo fictício. Era já de manhã – Emma e León tinham acabado de se encontrar em um palco da ópera de Rouen – quando, aturdido, deixei o livro e me dispus a dormir...”Orgia Perpétua, Mario Vargas Llosa, página 15, Editora Alfaguara, 2015

Na segunda parte começa um processo de “dissecção” do romance de uma forma original, que tenta mesclar a perícia do método acadêmico, típico em criticas e teses literárias, mas valendo-se de uma linguagem despojada, franca, quase ficcional, no sentido de que Mario tenta nos (re)contar uma história escrita por outro pessoa, conduzindo-nos pelos meandros admiráveis da verve criativa e obsessiva de Flaubert, sem que, com isso, percamos a vontade ou a curiosidade de lermos esse livro, para que possamos também nos deixar envolver em uma intricada “orgia perpétua”, também conhecida como Literatura, assim como Emma e seus romances, dramas e amantes.