quinta-feira, 6 de novembro de 2014

CHÁ DE POEJO

“Sente-se e beba chá de poejo
Destile a vida que está dentro de mim”
Pennyroyal Tea, Nirvana

O hálito quente de chá de poejo. A tosse seca. Não curou o chiado do peito. Nem amenizou a pressão. O aroma da erva. Daqui – à janela do sétimo andar. A luz desperdiçando o sol da manhã.  Sua imagem. No outdoor com moldura de madeira fina. “Informe publicitário: O direito à vida é inalienável”. Difícil mesmo foi ter que te levar naquele lugar. Bairro decente de subúrbio, desses em que o silêncio das ruas abafa os gritos de dor dos seus moradores. Não fosse a indicação exata da amiga, como acharíamos. Como é mesmo que se diz? Pensei num cartaz, um projeto gráfico. Sua expressão melancólica ampliada desproporcionalmente num zoom antirromântico. A pele rugosa das imperfeições do grude. Usaram rolos e baldes pra montar seu ideogramafacial.  Nesse porta-retratos de autoestrada. Na frente do prédio. Atrás do mar. Anunciando você. Perdeu-se de mim. “Paga-se bem por qualquer informação que possa...” Se publicar? Com essa nova Lei, quem sabe ninguém nem veja. Logo ao fundo é possível ver o esqueleto inerte de mais um prédio em construção. Seus olhos fugitivos de mim, em ângulo desfavorável à vista. Podia ligar na agência e reclamar e pedir meu dinheiro de volta. Esses moleques coladores. Rugas e estrias. Colagem mais malfeita. O espaço quase imperceptível no canto dos olhos. A impressão de quem desvia o olhar. Ao longe, na paisagem desconforme, a borra do chá no fundo do bule, no fundo da calcinha. Chá. Chão. Xá de alumínio. Chicára de porcelana. O contorno do copo pura poeira. O colchão no assoalho. Deitado com a máquina no tripé desnivelado. Seu olhar em foco. Descarregada. Sem click. Da lente fotográfica, olho no olho. Meu olho na lente dentro do seu olho. Se chover, ventar forte demais por muito tempo, sua pele de papel pode se desfazer. Feito feto escorrendo pelas pernas. Que loucura pensar nisso logo agora. Seu rosto pálido. Envelhecido. Reflexo mudo na parede do banheiro. Olhos lacrimejando. Xá-preto com coca. Para acompanhar, biscoitos placebos. Nosso filho perdido. Nos postes perto da clínica, restos de panfletos com palavras de protestos. Direito à vida... Fetos... Vidas... Merecem nascer... Amor materno. Secreto. Quem sabe, um diário escolar maldizendo os pais em garranchos revoltosos, nos acusando por tê-lo colocado nesse mundo contra sua vontade. Espermas também têm direito aos direitos humanos. Consciência insciente, rebelde. Fixei você num outdoor. Out dor. Infusão uterina. Chá-de-bebê. Noves meses sem encontrar você. “... não tem preço...”, dizeres de um anúncio na rádio. Pra te procurar daqui. De máquina na mão. Janela do Sétimo Andar. Tão estático como água fundida no solo. In útero inchado. Saquinhos de choro. Consolo. Sem ninguém pra adular. O que eu quis foi te proteger. Risco de deixar você sozinha. Naquele estado. Não tinha como a gente saber. Seguir a tabela. Em letras minúsculas: não contém glúten nem gordura trans. Reações adversas: efeito abortivo em ingestão com coca. Gestação. Quem diria que um simples costume milenar poderia afetar um feto. Água barrenta. Sem afeto. Um girino a coachar no bulebrejo. COAR-CHÁ! COAR-CHÁ! O choro agudo e insistente. Num cesto. A sair do útero para um cesto de lixo. O céu sem nuvens. Chárope expectorante. Antibiótico faz acelerar o coração. Já o tempo. Quando chegarem, encontrarão um recado sem assinatura no espelho pregado logo acima da pia do banheiro. Apaguem as luzes pra não ter que verem dentro da privada pedaços amorfos se desfazendo líquidos, vermelhos, lamacentos. Limpem o cinzeiro cheio de parafina e incenso. Cubram os pequeninos restos mortais em plástico bolha. Eu vou ficar. Até permanecer longamente... até que substituam sua imagem-cartaz por um anúncio qualquer de empreendimento domiciliar com uma família feliz. Casas. Apartamentos. Filhos. Apartar do peito os sofrimentos. Ir atrás de você escorrendo com nosso filho pelo ralo. Vai fugir de mim? Água fria, bolacha murcha. Melhor deixar a mesa pronta caso você resolva voltar hoje à noite, ou quem sabe amanhã enquanto durmo. Sem sonhar. Vejo tudo. Da janela, do sétimo andar, eles me acenam lá de baixo. Estão me chamando. Parecem feliz.