“A
ideia do suicídio é um forte consolo. Ajuda a suportar muitas
noites más.”
– Para
além do bem e do mal, Nietzsche
...qual
é, por que tá hesitando tanto, já não basta de tanta
indecisão? Oh, calma, respira, respira. Devagar, se
concentra! Meu coração palpita forte demais, ou serão ruídos lá
fora? Não posso mais continuar com essa vida, mas também não
gostaria de morrer. Vou continuar aqui, quieto,
esperando me convencer do que eu sempre tentei me fazer acreditar.
Queria parar de chorar, de tremer, de sentir o meu corpo todo como se
tivesse sendo consumido por frias chamas, minhas lágrimas ardem.
Vejo tudo distorcido, ardendo. Alguém está à minha espera, mas já
não quero comparecer a este encontro. Quantas e quantas vezes eu
faltei a encontros, a reuniões, a compromissos? Quantos não
ficaram a me esperar, ansiosos, aguardando inutilmente a minha
chegada? Àqueles, eu pude faltar sem mais explicações ou
pretextos. A essa, que agora sinto que me espera pacientemente, não
sei se poderei fugir. Eu a chamei, a invoquei por muito tempo, ou
marquei esse encontro inevitável, esse encontro precipitado. Sei que
poderia adiá-lo – haverá tempo para isso? Passos, como se
tivessem se aproximando, uma multidão a me espreitar. Todos me
aguardam! Como demoro, vêm a mim. Não, eu não quero! Não mais!
Não agora! Sentir meu coração disparado me faz desesperar, ele
não se acalma, aperto ele com minhas mãos trêmulas, elas tão
suadas, quentes. Meu corpo, frio... o peito arde... a cabeça a
formigar e a minha boca tá seca... Como é horrível chegar a uma
decisão a que já não se tem certeza! Não deveria ter permitido me
desviar pelos pensamentos. A consciência me faz reconsiderar,
ponderar. Até mesmo vacilar.
Dar espaço aos impulsos, é o que eu deveria ter feito. Seria
rápido, profundo e constante. E
depois, em meio a tanta agonia, era só esperar o sangue me cobrir os
olhos e me penetrar todos os sentidos... e morrer sem compreender bem
que morria. Como num escurecer. O sangue espalhado ao redor do meu
corpo – o sublime manto -, prova da minha coragem desesperada. O
meu sangue me protegeria das ações das pessoas. Ele as afastaria de
mim. Elas não gostam do sangue, muito menos do sangue dum suicida,
de alguém que se renegou às circunstâncias da vida... Acham o
sangue impuro, maldito... substância plena e simbólica dos ardores
da existência
e da morte. O sangue dum suicida não é rubro, nem vermelho. É
sangue! É desprezível como o ser que o derramou, que o fez jorrar
gratuitamente. O sangue dum suicida é sagrado, é profano: sagrado,
porque faz parte da celebração dum ritual divino; profano, porque
esse ritual divino também é pagão, devido ao paganismo de quem o
celebra. Mas então é isso: o sangue sacroprofano é o que irá me
purificar, me libertar, me integrar de volta ao plano de que fomos
todos perdidos. Mas eu ainda terei ânimo para derramá-lo, terei
coragem para verter dolorosamente esse meu sangue? Já nem me lembro
por que quero me matar. Muitas coisas passam pela minha mente ao
mesmo tempo, porém, são só lembranças e pensamentos e ideias que
não se deixam agarrar, não se fixam no meu consciente, não estou
certa da natureza deles. Agora me lembro que ainda ontem eu
relembrava que fui aprendendo, forçosamente, me submetendo e me
coagindo a não temer a solidão, a loucura e a lucidez extremas, a
frieza natural dos objetos e das paredes dos edifícios. Eu me
forcei a aprender a ser mais tolerante com os equívocos e com os
preconceitos, com as atitudes mesquinhas das pessoas, que por vezes
nos afagam, nos sufocam e até mesmo nos matam... Há um tempo elas
já não me interessam. Eu me coagir a aprender que muitas coisas
são possíveis e que poucas delas são verdadeiras, legitimas. Fui
aprendendo tudo que se oferecia a mim, e apreendendo tudo que eu me
obrigava recusar, e então eu me perguntei: o que é que me ficou,
o que é que me sobrou, o que eu tinha conseguido acumular, oh, o que é que eu tinha para me segurar, para me apoiar, para me
confirmar, para me agarrar e não cair trágica e pateticamente?
Ah, se todos se negam a me ajudar, se todos me negam um
suporte, minha nossa, como isso é tão forte e irreal!
Matar-se é tão difícil quanto viver. E agora percebo que em nada
essas duas questões se resumem ao fato de se ter ou não coragem
para realizá-las e encarná-las de sentidos. O problema que as
envolve, e com o qual eu me deparo, é profundamente complicado! E a
única coisa que me parece sobrar, é chegar a hipóteses vagas e
imprecisas sobre ele... Me lembro de certas palavras