terça-feira, 26 de agosto de 2014

ESCRITOS PANFLETÁRIOS

O Novo Sonho

Hoje é o dia pra sonhar/ Não levanta da sua cama/ não levante do chão/ Fique onde está/ Porque hoje é o dia feito sonho/ Hoje é o dia pra sonhar

Arranhe as janelas de vidro/ com suas unhas de metal/ Feche os céus lá fora/ Cubra todos os móveis/ com cortinas de nuvens/ Coma as flores e os objetos/ Encoste a cabeça no solo/ e sinta o palpitar dos ruídos/ vindos das ruas/ vindos de longe/ vindos de perto/ vindos dos sonhos

Hoje o dia não vai ser tão-lindo/ Hoje é o dia pra sonhar/ Sonhar com uma madrugada vermelha/ com os olhos brancos/ corpos verdes/ mãos azuis/ e sentimentos amarelos

Não... não levante sua cabeça/ pra tentar ver o que não se passa lá fora/ Presta atenção no que lhe acontece aí dentro/ É, aí mesmo: nos seus sonhos/ Hoje é o dia feito pra nascer

Recolha suas roupas/ seus filhos/ amigos/ vizinhos/ desconhecidos/ seus chinelos/ Deite-se e deixe todos ao seu redor/ Corta fora todas as vozes/ todos os passos/ todos os panos/ E lhes conte que hoje, sim, é o dia da Grande Criação – da criação de um novo Sonho/ E lhes mostre que ainda se pode sonhar, ainda/ Mas não lhes diga absurdos de monstros, seres e mundos extraterrenos/ Diga-lhes que o fantástico, hoje, é construir – em sonho – um mundo novo


E só vá dormir o seu sono/ quando todos estiverem dormindo profundamente/ e sonhando com leveza/ o novo dia... O novo dia que será anunciado – por todos e a todos – sobre o despertar do novo sonho

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Mais Uma Vez

"(..)Eu quero aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo em si – assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas, amor fati: que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acusadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação." Nietzsche, Gaia Ciência, §276



Tanto tempo levei
para me livrar dessa tristeza
E de tudo que sei
hoje sei, não vale muito
O muito que ouvi
quem dizia nunca se mostrou
De tanto caçar
de tudo já sonhei
E o tempo ainda passa
Os meus olhos não me veem
Aquele amor não dá graça
E as minhas lágrimas
são lágrimas de ressaca
Pelos mares da vida
a navegar, naufraguei
Meu corpo é uma vela
E o vento
quantas vezes não soprei?
Eu nunca me vi numa ilha
pelejando por alguém
Mas a vida ainda leva
E eu sei tão bem
que o tempo que me resta
eu mesmo o estimei
Pensei estar vivo
Na verdade, já nem sei
A loucura me parece tão bonita
que desejo me encontrar com ela
em algumas dessas ruas
por onde nunca passei
Mas meus olhos não enxergam
o que tantos olhos veem
A dor que me percebe
eu mesmo a cultivei
E, em seu fluxo, o mundo ainda me leva,

sem cessar, mais uma vez...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

SUICÍDIO

A ideia do suicídio é um forte consolo. Ajuda a suportar muitas noites más.”Para além do bem e do mal, Nietzsche

...qual é, por que tá hesitando tanto, já não basta de tanta indecisão? Oh, calma, respira, respira. Devagar, se concentra! Meu coração palpita forte demais, ou serão ruídos lá fora? Não posso mais continuar com essa vida, mas também não gostaria de morrer. Vou continuar aqui, quieto, esperando me convencer do que eu sempre tentei me fazer acreditar. Queria parar de chorar, de tremer, de sentir o meu corpo todo como se tivesse sendo consumido por frias chamas, minhas lágrimas ardem. Vejo tudo distorcido, ardendo. Alguém está à minha espera, mas já não quero comparecer a este encontro. Quantas e quantas vezes eu faltei a encontros, a reuniões, a compromissos? Quantos não ficaram a me esperar, ansiosos, aguardando inutilmente a minha chegada? Àqueles, eu pude faltar sem mais explicações ou pretextos. A essa, que agora sinto que me espera pacientemente, não sei se poderei fugir. Eu a chamei, a invoquei por muito tempo, ou marquei esse encontro inevitável, esse encontro precipitado. Sei que poderia adiá-lo – haverá tempo para isso? Passos, como se tivessem se aproximando, uma multidão a me espreitar. Todos me aguardam! Como demoro, vêm a mim. Não, eu não quero! Não mais! Não agora! Sentir meu coração disparado me faz desesperar, ele não se acalma, aperto ele com minhas mãos trêmulas, elas tão suadas, quentes. Meu corpo, frio... o peito arde... a cabeça a formigar e a minha boca tá seca... Como é horrível chegar a uma decisão a que já não se tem certeza! Não deveria ter permitido me desviar pelos pensamentos. A consciência me faz reconsiderar, ponderar. Até mesmo vacilar. Dar espaço aos impulsos, é o que eu deveria ter feito. Seria rápido, profundo e constante. E depois, em meio a tanta agonia, era só esperar o sangue me cobrir os olhos e me penetrar todos os sentidos... e morrer sem compreender bem que morria. Como num escurecer. O sangue espalhado ao redor do meu corpo – o sublime manto -, prova da minha coragem desesperada. O meu sangue me protegeria das ações das pessoas. Ele as afastaria de mim. Elas não gostam do sangue, muito menos do sangue dum suicida, de alguém que se renegou às circunstâncias da vida... Acham o sangue impuro, maldito... substância plena e simbólica dos ardores da existência e da morte. O sangue dum suicida não é rubro, nem vermelho. É sangue! É desprezível como o ser que o derramou, que o fez jorrar gratuitamente. O sangue dum suicida é sagrado, é profano: sagrado, porque faz parte da celebração dum ritual divino; profano, porque esse ritual divino também é pagão, devido ao paganismo de quem o celebra. Mas então é isso: o sangue sacroprofano é o que irá me purificar, me libertar, me integrar de volta ao plano de que fomos todos perdidos. Mas eu ainda terei ânimo para derramá-lo, terei coragem para verter dolorosamente esse meu sangue? Já nem me lembro por que quero me matar. Muitas coisas passam pela minha mente ao mesmo tempo, porém, são só lembranças e pensamentos e ideias que não se deixam agarrar, não se fixam no meu consciente, não estou certa da natureza deles. Agora me lembro que ainda ontem eu relembrava que fui aprendendo, forçosamente, me submetendo e me coagindo a não temer a solidão, a loucura e a lucidez extremas, a frieza natural dos objetos e das paredes dos edifícios. Eu me forcei a aprender a ser mais tolerante com os equívocos e com os preconceitos, com as atitudes mesquinhas das pessoas, que por vezes nos afagam, nos sufocam e até mesmo nos matam... Há um tempo elas já não me interessam. Eu me coagir a aprender que muitas coisas são possíveis e que poucas delas são verdadeiras, legitimas. Fui aprendendo tudo que se oferecia a mim, e apreendendo tudo que eu me obrigava recusar, e então eu me perguntei: o que é que me ficou, o que é que me sobrou, o que eu tinha conseguido acumular, oh, o que é que eu tinha para me segurar, para me apoiar, para me confirmar, para me agarrar e não cair trágica e pateticamente? Ah, se todos se negam a me ajudar, se todos me negam um suporte, minha nossa, como isso é tão forte e irreal! Matar-se é tão difícil quanto viver. E agora percebo que em nada essas duas questões se resumem ao fato de se ter ou não coragem para realizá-las e encarná-las de sentidos. O problema que as envolve, e com o qual eu me deparo, é profundamente complicado! E a única coisa que me parece sobrar, é chegar a hipóteses vagas e imprecisas sobre ele... Me lembro de certas palavras

SUICÍDIO (continuação)

 “Não importa o quanto tentemos, o quanto nos esforcemos e nos empenhemos, a ele, a este problema abismal, a este abismo sobre o qual nos lançamos ou que então ficamos a contemplar, só conseguiremos chegar a uma pequena, falsa e ardil porção de um imenso e pérfido emaranhado de camadas e depressões.”
“Matar-se, ou continuar a viver, pode-se realizar sob tantas circunstâncias, sob tantos projetos e objetivos, que talvez seja por isso a dificuldade tremenda que sentimos e vivenciamos nas situações em que nos parece que nós mesmos nos exigimos um rumo a ser apontado, um caminho a ser seguido, uma decisão a ser tomada, para se constituir na construção de uma vida ou para se consumar nas ruínas da morte.”
“Para convencer-se do suicídio, é preciso pensá-lo estando deitado, porque, quando deitados sobre nós mesmos e sobre nossas mãos, não sentimos mais o peso da existência, das pessoas, só nos sentimos a nós mesmos e nos sentimos completamente mutilados. E então poderemos olhar tudo ao redor para trazermos à tona tudo que permanece ausente, para nos encantarmos com a irrefutável beleza de todas as criaturas, tanto as da natureza como as humanas, e entendermos que elas, e nós mesmos, nunca fomos outra coisa senão isso: beleza! – uma beleza que não encerra em si mesma um significado e uma importância, por isso é que não se deve se crucificar tanto com a angustiante indecisão de se matar ou não. Além disso, viver em angustia contínua já é estar se matando. Existir nunca nos foi uma escolha. Não querer viver essa existência, sim!” 
    A maioria dos suicidas foram pessoas que acharam ter chegado ao extremo e se mataram. Sinto uma estima mórbida por elas e por seus atos derradeiros. Porém, me desanimo e novamente me desespero por não me decidir como elas. Eu costumava acreditar que somente por um impulso negativo se chegaria à conclusão de que talvez só fosse possível transformar intensamente a vida, e a si próprio, exterminando, liquidando essa existência assentada na imanência de todo uma realidade, ao mesmo tempo, exterior e objetiva e interior e subjetiva. Esses dilemas, essas dualidades me exasperam! Quero olhar pra mim mas tenho medo dos meus movimentos. Tenho medo de pensar em fazer uma coisa e quando menos esperar me deparar fazendo outra: a mão que vai sentir o peito e quando se percebe ela o apunhalou intencionalmente, rasgou suas vísceras e espalhou sangue por todo o corpo... Eu costumava acreditar que os suicidas eram pessoas que, ao sustentarem a hipótese da existência dum caos interminável e imutável, sob o qual a realidade do mundo, que é a nossa, estaria inevitavelmente atrelada, e tomados por sucessivas e violentas alucinações, psicoses, neuroses, sentimentos de angustia e desespero, eles, por um momento – o momento anterior ao da resolução final – ficavam serenos, brandos e indiferentes, pois se convenciam de que não há por quê sofrer tanto com o impasse de se morrer ou se manter vivo num mundo de seres e objetos e de muitos outros elementos carentes de sentido.
Parece que lá fora, e mesmo aqui dentro, tudo se aquietou... As mães devem dormir com seus filhos... a mulher, com seu amante... e cada um com sua dor e sua alegria... fatais... A madrugada é plena... tudo ocorre em seu misterioso ritmo costumeiro... Daqui a pouco será dia e eu, exausto, estarei dormindo o silêncio do mundo, completamente só, mais uma vez...