terça-feira, 8 de novembro de 2016

Meninos em Fúria

Meninos em estado de fúria
Brigam, se encontram
Dançam, se debatem
Por diferentes cantos da cidade
Um punk negro
Grita em meio a multidão
Que há pânico em SP
Que há punk em SP
Seu grito ecoa pichado pelos muros urbanos
Da cidade maldita
Onde muitos de seus filhos já nascem
Com as marcas do abandono e do descaso
Para sobreviver
 Mas também para se divertir
Meninos em fúria se reúnem sob os signos
Aparentemente diversos de gangues
No metrô, nas linhas de ônibus
Não se anda sozinho
Se quiser voltar pra casa ileso
A rotina? O perigo iminente talvez na próxima esquina:
Uma insígnia de uma gangue adversária
Ou a polícia sempre sedenta por violência
Do alto de sua autoridade bruta
Mais um menino em fúria tombou
Acordem a cidade!
Seu corpo – uma massa informe de couro preto e sangue escuro
A música toca não a marcha fúnebre
Mas um som rápido, ligeiro
Cheio de fúrias
E de letras que fazem estremecer de tanto desabafo
Meninos dançam como quem briga
Meninas brigam como quem dança
Há muita vontade
Há muita confusão de corpos desejos violência prazer dor e medo
Meninos em fúria
Sem aparente razão celebram a Vida
O Punk
O Rock
A Música



sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O Mistério de Elimar

Elimar era um ser ENORME, muito mas muito GRANDE.

Tinha uns olhos profundos, vagas, vagos.

A gente nem sabia ao certo se Elimar era ele ou ela.

E isso aumentava inda mais nossa curiosidade.

Elimar às vezes passava pela gente e parecia que ia levar a gente junto. Era incrível!

Arrastava e devastava tudo com uma força fantástica. De tão emocionante chegava dar um pontinha de medo.

Eu e os outros queríamos nos aproximar d'Elimar mas não sabíamos como.

Os mais velhos viviam discutindo possíveis histórias sobre Elimar. Uns diziam que Elimar já tinha matado muito gente. Outros, que Elimar já tinha levado muita gente pra bem longe.

Tinha também aqueles que diziam que Elimar era culpado por muitas saudades e histórias corajosas.

De navegantes, guerras, donzelas, piratas, marinheiros, descobrimentos....

A gente ficava na dúvida, impressionados com tantas histórias fabulosas. Pensávamos e pensávamos, tanto e tanto, que a gente ficava tonto.

Ficar olhando pra Elimar, assim, durante muito tempo, meio que perdido, esquecido de tudo, enfeitiçado por aqueles olhos imensos, infinitos de se perder no horizonte... também deixava qualquer um tonto de zonzo.

Só que também se sentia uma calma danada se um olhasse pra Elimar quando estava tudo sereno, manhecido. Tão bom!

Tinha vontade de mergulhar em Elimar, me aprofundar pra sempre.

Igual àqueles seres que viviam dentro d'Elimar, nadando no seu corpo oceânico, marinho.

- Aquário móvel de amplidão!

Mais tarde, vamos reunir o pessoal pra contar mais histórias. Eu já escolhi a minha: vou dizer um poema – o poema Mistério de Elimar.

O mar tá de ressaca. E os pescadores vão ter que esperar.


sexta-feira, 7 de outubro de 2016

No Metrô

A cabeça encostada no vidro da janela do vagão do metrô. Os olhos dela estão lacrimejando. Algumas pessoas olham para ela ou disfarçadamente ou de forma direta. Ela mastiga algo que pode ser um chiclete borrachudo, uma bala já sem doce ou amendoim espedaçado. As pessoas olham para ela. Ela mastiga e chora. Mas chora sem lágrimas. É possível apenas ver seus olhos submersos em um líquido transparente, translúcido. Ela olha para o celular, depois, para lugar nenhum. Da janela do metrô só se vê uma sucessão veloz de escuridão entrecortada por instantâneos de luz. Ela mexe a boca, morde os lábios. Parece estar se esforçando ao máximo para não chorar, pelos menos, não ali, naquele espaço público, no qual, as pessoas acham que são obrigadas a fingirem, com um cansaço desmedido, indiferença mútua. Mas todos ao redor dela estão olhando para ela, observando, curiosos do possível motivo do seu aparente sofrimento.

Eu a vejo não diretamente, mas através do reflexo dela na porta do vagão. Fico pensando, querendo saber: o que terá acontecido? só mais um dia ruim de rotina e falta de melhores expectativas? uma palavra rude que gerou uma discórdia amorosa, ou talvez familiar? quem sabe, talvez algo mais profundo e abstrato, uma angústia existencial? Seus olhos apenas lacrimejam. Ela parece murmurar mas não se ouve nada. Só nos resta imaginar, projetar, especular.

Alguns passageiros desembarcam a cada estação. E ela permanece lá, alheia aos anúncios de próxima parada, com a cabeça encostada na janela do vidro do metrô. Quem a observava, antes de desembarcar, dá mais olhada como que para se certificar se ela não se entrega de vez e chora logo, um choro dolorido, sem receios ou cerimônias. Ela mal se mexe, impassível à curiosidade alheia.

Minha estação já passou. Decido seguir em viagem. Vou segui-la, ver aonde ela vai. Será que outros passageiros também estão fazendo o mesmo que eu. Muitos, certamente, já deveriam ter desembarcado, mas, presos a essa curiosidade um tanto invasiva, deixaram-se seguir para acompanhá-la, também.

Uma voz anuncia que a próxima parada será a última e que todos deverão descer. Logo após  este anúncio, todos olham para ela, que parece chorar sem lágrimas, como que esperando ansiosos por uma definição sua, por um gesto qualquer. Ela não diz nada, não faz nada. Todos se mostram desesperados, deslocados diante dessa situação insuportável de invasão coletiva de privacidade. Ela continua sem se mover, sem chorar de uma vez. A cabeça grudada no vidro. Os olhos se afogando melancolicamente. Cada um dos expectantes invasivos tenta se distrair com alguma banalidade, como conversar com o amigo ao lado, reclamar do atual do governo, maldizer as mudanças climáticas repentinas da cidade, olhar o celular.

Ela se levanta, devagar. Vai em direção à porta. Sempre a olhar para algo que nenhum de nós parece ser capaz de captar. Alguém grita: Ei, moça, acho que isso é seu...! Ela desembarca e segue pelas escadas rolantes sem nem olhar para trás. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

MOEMA


Moema veio se arrastando. Os passos pesados e dissonantes, afundando pedras e arrancando asfalto. Caminhava devagar, talvez pelas dimensões corporais. Trinta e dois metros de altura, apesar da estreiteza do corpo. Os braços longos e finos. As pernas fortes e grandes. Os cabelos a encobrir-lhe os olhos marejados.

Atraiu a curiosidade dos circunstantes mais pelo modo encurvado e lento com que vinha caminhando do que pelas mãos sangrentas fechadas em concha.

A enxurrada de suor, que as pessoas julgavam escorrer pelo seu rosto, era na verdade a substância salina do seu sofrimento.

Por onde passava, abstraída na própria dor da caminhada, tentavam chamar-lhe a atenção, acenando braços e bandeiras e obstando-lhe a passagem com obstáculos grosseiros e fáceis de serem cruzados. Alguns, tocados pela peregrinação da criatura colossal, ofereciam-lhe água e alimentos, arremessando-os em direção à grande boca e vendo-os absorver na textura cinza da pele. O organismo de Moema os absorvia sem que ela precisasse parar por um só momento que fosse.

Seguia pelas estradas, rodoviárias, oceanos e mares, cânions e florestas, vales e montanhas, contrita na peregrinação que lhe impusera. Nunca respondia às perguntas, deixando oculto o objeto de sua missão e aumentando a curiosidade alheia de pessoas e Estados. Como medida meramente preventiva, diziam alguns chefes de estado, era-lhe proibida a passagem por este ou aquele território nacional, já que se omitia a revelar as suas reais intenções. Como não entendesse a linguagem humana, ou os artifícios retóricos de tais discursos, excedia os limites de uma fronteira qualquer e logo era submetida a perseguições e acusações ferrenhas e bélicas. Cientes do fracasso de tais investidas, os agressores mantinham os ataques até que a invasora abandonasse a federação, com buracos, pólvoras e arranhões pela extensão corporal.

Nos lugares mais amistosos e receptivos, reparavam-lhe as feridas e os machucados, fazendo-lhe curativos ineficazes nas cicatrizes. Davam-lhe alimentos diversos e rações, e a banhavam com a ajuda de escadas e esfregões ou com mangueiras de bombeiros. Saia desses lugares carregada de fotos, imagens, pulseiras, perfumes, presentes, bilhetes e oferendas pregados nos calcanhares, tornozelos, canelas e costas.

Moema já caminhava ininterruptamente há décadas, sempre vagarosa e encurvada com as mãos fechadas em concha, abalando o terreno com as passadas violentas. Os que tentavam lhe desvendar os segredos dos olhos ou o flagelo das mãos eram esmagados com indiferença pelas toneladas de suas pisadas ou pelos repelões dos seus braços ferozes. Deixem ela em paz, gritavam os que se compadeciam dela e os que se afligiam com os que a importunavam.

Ela caminhou tanto e tão obstinadamente que ultrapassou os limites terrestres sendo observada pelas lentes atentas de satélites estrangeiros.

Séculos depois, tendo sido vigiada constantemente, chegou à Terra as imagens de seu paradeiro: no ponto mais alto de um planeta montanhoso Moema depositou, chorosa e maternal, o ninho de coroas de espinhos com o feto deformado entre dois testículos enrugados. Naquele exato momento, enquanto viam aquela transmissão, alguns desviaram os olhos, abismados — a expressão de profundo espanto. Outros se felicitaram com a descoberta de um novo planeta que abria novas perspectivas para a exploração interplanetária. Mas todos eles sentiram com incomodo um grande vazio se expandir dentro de cada um.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

24 HORAS - PARTE I


Clarice abre os olhos. Acorda. É um novo dia. Outro dia. “Mas o que é um dia?”
Um dia é o tempo que a Terra leva para dar uma volta completa ao redor do Sol, como se ela fosse uma bailarina rodopiando em volta dele, seu companheiro amarelo, laranja, imenso, enquanto a gente faz um monte de coisas e nem percebe o rodopiar da Terra, o movimento do tempo se deslocando com o espaço.
A gente acorda. Abre os olhos, se espreguiça. Ainda sonolentos, a gente se levanta, escova os dentes, lava o rosto. Toma café. Vai para escola, para o trabalho, para lugar nenhum, ou fica em casa e volta a se deitar.
“Levanta logo, menina!”
A mãe chama, ela lembra o galo despertando todo dia de manhãzinha, obrigando a gente despertar do sono gostoso, daquela preguiça manhosa.
“Ai... que sono”,  a menina boceja.

A mãe, o galo e o despertador anunciam que já chegou o dia. O Sol já se pôs lá no alto. É hora de se levantar.
“Onde o Sol se põe? Será debaixo da cama...”
Só os chinelos e as pantufas com cabeça de animais. Pela janela, pelos buracos da janela, os primeiros raios de sol entram no quarto de Clarice, aquecem os pés dela, fazem sombras nos móveis e no rosto dela encoberto pelos cabelos negros. Alguns raios se lançam direto para debaixo do tapete ou para um canto do quarto onde se perdem. Algumas sombras são engraçadas, lembram monstros ou formas geométricas.
“Será hoje a aula de matemática? Na dúvida, melhor levar o livro.”
Os livros, tantos livros. O peso da mochila e a postura encurvada. Todo aquele conhecimento... Ela tem que se esforçar, resistir.
“Saber as coisas pesa assim, é?”
“Antes não saber nada, e ser livre para voar...”
“Veja só: o conhecimento é tão complexo quanto às asas de uma borboleta. Mas, do mesmo jeito que estas, o conhecimento pode fazê-lo (ensiná-lo) voar livremente, por muitos lugares desconhecidos e interessantes. Se você pensar assim, todo esse Saber se torna leve como as asas de uma borboleta.”
Clarice lê a primeira página de um dos livros. Olha o céu no horizonte. Toda aquela imensidão sem fim. Cinza-azul.
“Quer dizer, o céu, apesar de estar lá em cima, é terreno porque faz parte da Natureza da Terra. E a Terra faz parte do Espaço. O Cosmos. Aquela infinidade de silêncio, escuridão, estrelas, galáxias, poeira cósmica. E nós?” Sozinhos, no mundo.
“No nosso mundo, no nosso planeta pálido ponto azul na vastidão do espaço...”

Clarice olha em volta e já está na sala de aula. Os outros alunos e o professor observam atentamente a expressão dela.
“No mundo da Lua, Clarice?”
“Ahn... não... Quer dizer, só pensando...”
Os alunos riem, e o professor continua sua explicação sobre as borboletas. As fases: 1º lagarta, 2º crisálida, 3º borboleta. A metamorfose, que quer dizer a transformação da forma, por que passam esses seres vivos antes de se tornarem o que são.
Clarice pensa em si mesma, no seu corpo, que é ela mas ao tempo não é. Ela pensa em como está mudando, em como seus pensamentos agora são outros. Ela já não se interessa mais pelas mesmas coisas de antigamente. Antes, ela apenas estava ali, no mundo, com outras pessoas, animais, coisas e objetos, e nem passava pela sua cabeça sobre ela estar ali. Agora, Clarice quer saber mais dela mesma, do seu corpo, do mundo, de um monte coisas a sua volta.
“Quanto mais se aprende, mais as dúvidas aumentam...”
Onde será que ela estava quando não pensava sobre estar onde estava? A gente já existia antes mesmo de nascer? Ser alguém é ser o quê? E quando a gente sabe, porque sente, que tem algo em nós que a gente não saber dizer de onde vem, de onde é e o que é? E aquela sensação, sem um sentimento muito bem definido, a apertar o nosso peito mesmo estando rodeados de amigos, nos fazendo nos sentir sozinhos, abandonados?

24 HORAS - PARTE II


Ela volta a prestar atenção na aula. O professor continua falando sobre as borboletas. Sobre o longo tempo entre o primeiro e o segundo estágios necessários para que a borboleta se transforme no que é. Depois, ela vive vinte 24 horas, um dia, e morre, quem sabe se perguntando se ela viveria por mais longos anos...

“Só que esse questionamento sobre a brevidade da existência é coisa da nossa espécie humana. Não se iludam quanto a isso, ok?”

“Coisa da nossa espécie...?”, Clarice pergunta com voz tão baixa que ninguém escuta. Mas sua intenção era essa mesma, que ninguém escutasse, porque, de alguma forma, Clarice sabe que ninguém saberá ao certo responder a essa pergunta.

Um pouco triste, ela folheia o livro de Biologia e vai se alegrando aos poucos, conforme vê a diversidade de cores e formas das borboletas. Umas têm asas tão coloridas e com desenhos enigmáticos. Outras parecem ter olhos bem grandes e negros contornados por um azul fraquinho nas asas. Asas abertas, estas parecem dois olhos enormes. E quando a borboleta bate as asas deve parecer olhos piscando. “Assim:...”

Clarice fecha os olhos e quando os abre novamente, ela já está em casa. Deitada. O dia já passou. O Sol já se foi. Borboletas nasceram, cresceram e morreram. Antes, voaram e voaram muito por aí, pelos ares, pelo céu. Entrando em flores e sugando néctar. Arranjando pares. Fugindo de caçadores. Se aventurando, vivendo e... finalmente, morrendo.

“Elas têm sangue? Será que sabem quando estão morrendo? Se não, como explicar essa pressa em viver e fazer tantas coisas...?”

A menina sente algo frio, muito frio, vindo lá de dentro dela, bem do fundo do seu ser. Fica quieta, parada, apreensiva. Sente algo escorrendo entre suas pernas. É algo líquido. É gelado, muito gelado. É vermelho. O chão fica tingindo de vermelho como o céu quando está no fim de tarde. Clarice tem vontade chorar, de gritar, de pedir socorro. Mas sabe que não há dor, só sofrimento, e ela completamente só no seu quarto.
Ela se levanta, vai até a janela. Abre. E os raios de Sol invadem o seu quarto numa explosão amarela e quente. Clarice sorri, cega de luz. Bate os braços como se fossem asas e pousa na cama como se fosse uma borboleta despertando para o instante eterno e perfeito que só durará 24 horas.

sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais


Véspera de feriado. Ele saiu do trabalho pensando no sentido daquela data.

A princípio, menosprezou a ocasião baseado na necessidade com que as pessoas apareciam no comércio onde ele trabalhava, desesperadas por um presente que pudesse simbolizar os afetos que sentiam pelos seus pais. Para ele, havia algo de superficial e mesquinho naquilo, que lhe causava um gosto amargo na boca. Vaidoso do seu rancor, a cada atendimento, ele olhava com desdém o cliente a sua frente lhe pedindo como uma criança deplorável algo que fosse de acordo com o perfil de um pai, um alguém que ele não conhecia mas que já odiava e sentia pena desde então. Nessas ocasiões, ele não fazia a menor questão de se empenhar em ajudar o seu cliente na escolha do “delicado presente”, e até sugeria produtos discordantes com a descrição feita pelo comprador. Indicava uma coisa qualquer e, para sua surpresa, o cliente lhe agradecia alegremente pela sua “indicação certeira”.  

Aquilo tudo era um absurdo, uma data sem sentido algum, a não ser fazer com que as pessoas consumissem mais e mais, sem pensarem em suas próprias misérias e carências.

Mas, e ele? Afinal, não trabalhava no comércio? Sua sobrevivência, seus rendimentos não dependiam diretamente do anseio de consumo alheio, e do dele próprio? Tentava se justificar, repetindo diariamente, que aquela era só uma ocupação temporária, um período intermediário até descobrir sua legitima vocação; até que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudariam e ele faria o que sempre quis, ainda que isso não estivesse bem claro para ele até ali.

Andando pelas ruas, encurvado, mãos nos bolsos da blusa, a quem ele tentava enganar? Olhava de soslaio para os que passavam ao seu lado, e pensava: eles não sabem de nada. Mas consciente, lá no fundo de seu interior, ele sabia: todo o seu ressentimento pela espécie humana e pelo mundo era só um reflexo do que nutria por si mesmo, formando uma imagem própria de um sujeito covarde, pobre, fraco, sem objetivos e convicções; um desses seres que aguardam a vida toda por aquele momento que virá de repente obrigando-o a mudar de vida de maneira significativa, dando-lhe de bandeja todo pretexto necessário que a falta de coragem nunca lhe permitira. Pensar aquelas coisas lhe causava certo prazer doloroso. Caminhava devagar, procurando a todo custo passar despercebido pelos olhares dos outros, perdido na sua quimera de diluir-se sem jamais ser notado. No seu anseio quimérico de não ser ninguém, ele sabia, e isso era o que mais lhe doía, ele era só mais um alguém.

Odiar-se, menosprezar-se – ó vertigem narcísica de diminuir-se, eram palavras que ecoavam dentro dele.

Ele então erguia a cabeça e observava as pessoas com ódio. Não era justo culpar-se daquele jeito. Não era certo carregar sozinho, em ombros tão frágeis, tanto desgosto e desespero. E aquela data vinha exatamente para lhe lembrar quem era o verdadeiro responsável pela sua existência insignificante. Meu pai - sussurrou baixinho, para garantir que ninguém pudesse ouvir aquelas palavras sem deixar de perceber nelas o peso de uma acusação infantil e tola. Meu pai, repetiu em pensamento, como quem faz uma prece ao mesmo tempo em que duvida da entidade pela qual roga.

Aquele homem, ele nunca o conheceu muito bem. Seu ressentimento pela figura paterna talvez tivesse origem daí. Das lembranças frágeis e escassas de um homem seco, de poucos afetos. Austero, misterioso, sombrio. Das poucas lembranças que tinha, o pai sempre figurava como um personagem de um sonho, do qual, nunca nos é permitido ver com nitidez o rosto, mas que está quase sempre naquelas perseguições e atribulações oníricas das madrugadas. Um fantasma de carne e osso. Uma ausência constante. Um sempre ausente, indo e vindo nas suas atribulações de filho sem quase nunca aparecer de verdade.

Lembrava-se das vezes em que a mãe comentara da origem humilde e nordestina da família, de como o seu avô, pai de seu pai, morrera, deixando a cargo dos filhos a tarefa de trabalhar e sustentar os parentes de casa; lembrava-se dela contando com certo orgulho de quando o pai dele viera para São Paulo sozinho, para tentar conseguir um emprego e moradia, para poder trazer ele, o filho, e ela, a mãe, para uma realidade mais “digna e confortável”. E conseguira, não viviam nas melhores condições, mas levavam uma “vida justa, de aluguéis e carnês pagos com retidão”. Viviam felizes a sua maneira, até que... Apesar das seguidas traições, das acusações, das brigas que antecederam o divórcio, o tom de acusação nas palavras da mãe provinha dele, o filho, e não dela, a mãe traída, a mulher vingada. Ele, sim, se sentia traído.

Talvez um dia se reconciliasse com seu velho. Na verdade, nem sabia ao certo a idade que o pai deveria ter, nem por que o odiava tanto.

Talvez um dia perdoasse seu pai, mas não daquele perdão que as religiões pregam. Sim, de perdão mais humano, mais visível, um perdão de quem sabe e sente quão precária e irrisória é uma vida humana. Um perdão árduo, cheios de acusações. Mas ainda assim, um perdão. Uma reconciliação possível, depois de tanto tempo de ausências e esperas.

Ele então ligaria para o pai, no dia mesmo do Dia dos Pais, e, quando o outro atendesse perguntando quem era, ele, o filho, simplesmente lhe diria:

- Tudo bem, pai, eu te perdoo... a sua ausência... Estou pronto. Já posso te encontrar de novo.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Un Hombre va a morir


Se puede ver

en su semblante

un hombre va a morir



Y no hay nada que podríamos hacer

ni algo que podríamos decir




se puede ver en su semblante

triste
pero un hombre va a morir

terça-feira, 10 de maio de 2016

CANÇÕES DE INVERNO


the winter is comming

o inverno está chegando

uivam os ventos

carregados do norte



os corpos

com cheiro de Verão

se arrepiam

como uma alcateia no cio



do alto de uma Torre

um menino com asas de corvo

despenca

 em direção a um abismo de sonhos



os ventos açoitam sua face


“as coisas que

 faço por amor”

“às coisas

 que faço por amor”

“há coisas

 que faço por amor”



 * 



arya stark


o fantasma de Harrenhal

se esgueira pelas sombras

escorrega pelas vielas

descalço de silêncio



sussurra nomes

que somem

(um homem... dois homens...)

e batalha bravamente

numa incessante quimera



já foi a indômita donzela Cara de Cavalo

e Arry menino

para poder vestir o Negro

Cabeça de Caroço

quando se mostrou valente guerreiro

Doninha

pra poder viver na lida

e até mesmo Nan -

a loba Nymeria



dançarina das águas

flui como lagrima furtiva

nos pequenos olhos da bravura



 *

 Jon Snow



o lobo bastardo

fruto do sêmen do Inverno

de uma manhã quente

sem nome



um grito de gozo

“snow!”



suas patas silenciosas

suas garras delirantes

cria de si mesmo

com seus olhos rubros



irmão negro

sem direitos e herdeiros

peregrina na defesa de Westeros



em seu amparo

Garralonga

a espada bastarda

do Velho Urso Comandante

com semblante de corvo



cria de uma mãe

que não tem nome

nem rosto

a mácula de uma honra decapitada

um segredo impermeável e frágil



um filhote desgarrado

entre a alvura do gelo



das presas

 escorre o sangue de uma presa

no corpo

corre o sangue gélido e secular do Norte

e dos selvagens antigos



sente cheiros invisíveis

 e ruídos taciturnos

e eriça o pelo

furioso no pressentimento



a lembrança amarga

de uma vida não vivida

e a semente inócua

tão infértil

quanto o solo inóspito

além-norte de Winterfell


 * 

 tyrion lannister


o pequeno demônio siamesco

tem três olhos

um verde

um negro

e um sábio e mordaz



mão do rei

pulso forte

em braços atrofiados e pequenos



o membro sedento

e as mãos de Shae



um amor comprado

uma ilusão necessária

num mundo de hostilidades



entre o carmesim

e a verdade sem verdades



e o cinza sem mentiras

gris como a maldade



e a corte de intrigas

e os mercenários selvagens



entre uma aranha eunuco

e um Mindinho empoado



entre as pernas abertas

o amor impossível e a luxuria



transitando entre tantos lados

astucioso na inocência



tão santo e casto

quanto um bordel

em tempos de guerra



tão honroso e vil

quanto títulos e honrarias



o duende Lannister

entre o bem e o mal

que não existem

ardiloso na justiça








BALADA DA DONZELA com CÃO DE CAÇA



            I

presa na masmorra

            do coração

a donzela chora e chora

a cada mágoa

            a dor de uma ilusão



chora e sonha

sonhos em floreios

bravos cavaleiros

vive o amor perfeito

            na ânsia louca da paixão



o fero afago

            real e carmesim

fere fel

e um doce amargo



            - por que choras, passarim?



o amor sangra

e se derrama

em ódio e fúria

            dentro de mim



donzela eu fui

            donzela eu era

mas agora

            a flor que medra

é rude e pálida

um vil cetim



o meu príncipe

            virou um rei

e agora

             eu já nem sei

quem virá em meu socorro:



            se um cavaleiro ébrio, bobo e delirante

            se um cão de caça beligerante

            se o cavaleiro das Flores

            ou mais horrores



            ou então a morte

            a me redimir...



            II

as dores que tu cantas

em lamentos ritmados

já ouvi outras tantas

em versos antepassados



sei que me face te espanta

mas olhe no fundo dos meus olhos

vês esse vazio em carne viva?

assim ficará teu coração

cada vez mais negro

cada vez mais rijo

e desse teu pequeno rosto

não se verá vislumbre de um sorriso

só o esgar

vergonhoso e ridículo

por amares tanto

o que deveria ser odiado

por fantasiares tanto

um mundo hediondo



é uma pena, passarim

não para eles

não para nós

não para mim

que acabes assim

e que nem o mais louco dos bardos

escreva uma canção sobre ti





 *


 Uma Canção de Verão



amei um donzela

linda como o verão

com luz do sol nos cabelos



seus olhos de verão

e seu cheiro veraneio

Deitar sobre o seu corpo

era como espraiar-se pelas águas



amei um donzela linda

radiante como o verão



seus cabelos ourossol

derramavam-se pelos seus ombros alvos

e seu rosto se escondia

em sombras cinzas-amarelas

e seu sorriso se expandia

um convite em segredo



Amei uma donzela

numa noite de verão



as estrelas salpicaram nossos corpos salinos

de aguamar, areia e orvalho

Exaustos, deitamos sobre a superfície do Sol

vazios e completos do nosso amor



Passou-se Primavera, Outono, Inverno...

Outro Verão...



Até que ela se foi

arrebatada de meus braços

por uma onda mortal

Eu afoguei o mar

com as lágrimas da lembrança:



amei uma donzela linda como verão

terça-feira, 12 de abril de 2016

ESTICAR


ESTICOU A PALAVRA

                                   T          A         N         T          O
QUE A P

            A

            L         A         V

            R         A         MESMO

PERDEU        S          E         U
                                   N
                                   C
                                   A
                                   N
                                   T
                                                                      O

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

IDIOT WIND


 (inspirado na canção homônima de Bob Dylan, álbum Blood on the tracks)


            E o vento estúpido
sopra minha voz
pra longe de mim

            E quem vai querer ouvir
essa voz rouca
            e fraca
arrastada pelo vento estúpido
feito folha seca fora de rumo

            E o vento estúpido
sopra meu canto
pra longe de mim
mas entre as árvores altas
            e o estalar dos galhos
que se quebram
posso ouvir o Silêncio
            ecoando dentro de mim

            E quem vai querer ouvir
essa voz vagando por aí

            O vento estúpido
arrasta a folha seca
            da árvore
            a folha seca
em branco
            do caderno
faz tombar a garrafa vazia
            e a alegria embriagada
            e a cabeça do homem
sentado na janela

            E ele sente o vento estúpido
que sopra
sempre forte
            cada vez mais
            como se o mundo
            as pessoas
fossem frágeis gravetos
prestes a quebrar

            E quem vai querer ouvir
essa voz
rouca e fraca
            arrastada pelo vento estúpido
            E quem vai querer ouvir
                        uma voz
                        um lamento
de mais um prestes a cair

            E o vento estúpido
(que tudo ignora)
            sopra meu canto
pra longe de mim

            E de boca aberta
prestes a cair
(pela última vez)
um vento estúpido
            sai dos meus lábios
... pela última vez