Véspera de feriado. Ele saiu do
trabalho pensando no sentido daquela data.
A princípio, menosprezou a ocasião baseado
na necessidade com que as pessoas apareciam no comércio onde ele trabalhava,
desesperadas por um presente que pudesse simbolizar os afetos que sentiam pelos
seus pais. Para ele, havia algo de superficial e mesquinho naquilo, que lhe
causava um gosto amargo na boca. Vaidoso do seu rancor, a cada atendimento, ele
olhava com desdém o cliente a sua frente lhe pedindo como uma criança
deplorável algo que fosse de acordo com o perfil de um pai, um alguém que ele
não conhecia mas que já odiava e sentia pena desde então. Nessas ocasiões, ele
não fazia a menor questão de se empenhar em ajudar o seu cliente na escolha do “delicado
presente”, e até sugeria produtos discordantes com a descrição feita pelo
comprador. Indicava uma coisa qualquer e, para sua surpresa, o cliente lhe
agradecia alegremente pela sua “indicação certeira”.
Aquilo
tudo era um absurdo, uma data sem sentido algum, a não ser fazer com que as
pessoas consumissem mais e mais, sem pensarem em suas próprias misérias e
carências.
Mas, e ele? Afinal, não trabalhava no
comércio? Sua sobrevivência, seus rendimentos não dependiam diretamente do
anseio de consumo alheio, e do dele próprio? Tentava se justificar, repetindo
diariamente, que aquela era só uma ocupação temporária, um período
intermediário até descobrir sua legitima vocação; até que, mais cedo ou mais
tarde, as coisas mudariam e ele faria o que sempre quis, ainda que isso não
estivesse bem claro para ele até ali.
Andando pelas ruas, encurvado, mãos
nos bolsos da blusa, a quem ele tentava enganar? Olhava de soslaio para os que
passavam ao seu lado, e pensava: eles não
sabem de nada. Mas consciente, lá no fundo de seu interior, ele sabia: todo
o seu ressentimento pela espécie humana e pelo mundo era só um reflexo do que
nutria por si mesmo, formando uma imagem própria de um sujeito covarde, pobre,
fraco, sem objetivos e convicções; um desses seres que aguardam a vida toda por
aquele momento que virá de repente obrigando-o a mudar de vida de maneira
significativa, dando-lhe de bandeja todo pretexto necessário que a falta de
coragem nunca lhe permitira. Pensar aquelas coisas lhe causava certo prazer
doloroso. Caminhava devagar, procurando a todo custo passar despercebido pelos
olhares dos outros, perdido na sua quimera de diluir-se sem jamais ser notado.
No seu anseio quimérico de não ser ninguém,
ele sabia, e isso era o que mais lhe doía, ele era só mais um alguém.
Odiar-se,
menosprezar-se – ó vertigem narcísica de diminuir-se, eram palavras que ecoavam dentro
dele.
Ele então erguia a cabeça e observava
as pessoas com ódio. Não era justo culpar-se daquele jeito. Não era certo
carregar sozinho, em ombros tão frágeis, tanto desgosto e desespero. E aquela data
vinha exatamente para lhe lembrar quem era o verdadeiro responsável pela sua
existência insignificante. Meu pai -
sussurrou baixinho, para garantir que ninguém pudesse ouvir aquelas palavras
sem deixar de perceber nelas o peso de uma acusação infantil e tola. Meu pai, repetiu em pensamento, como
quem faz uma prece ao mesmo tempo em que duvida da entidade pela qual roga.
Aquele homem, ele nunca o conheceu
muito bem. Seu ressentimento pela figura paterna talvez tivesse origem daí. Das
lembranças frágeis e escassas de um homem seco, de poucos afetos. Austero,
misterioso, sombrio. Das poucas lembranças que tinha, o pai sempre figurava
como um personagem de um sonho, do qual, nunca nos é permitido ver com nitidez
o rosto, mas que está quase sempre naquelas perseguições e atribulações
oníricas das madrugadas. Um fantasma de carne e osso. Uma ausência constante.
Um sempre ausente, indo e vindo nas suas atribulações de filho sem quase nunca
aparecer de verdade.
Lembrava-se das vezes em que a mãe
comentara da origem humilde e nordestina da família, de como o seu avô, pai de
seu pai, morrera, deixando a cargo dos filhos a tarefa de trabalhar e sustentar
os parentes de casa; lembrava-se dela contando com certo orgulho de quando o
pai dele viera para São Paulo sozinho, para tentar conseguir um emprego e
moradia, para poder trazer ele, o filho, e ela, a mãe, para uma realidade mais
“digna e confortável”. E conseguira, não viviam nas melhores condições, mas
levavam uma “vida justa, de aluguéis e carnês pagos com retidão”. Viviam
felizes a sua maneira, até que... Apesar das seguidas traições, das acusações,
das brigas que antecederam o divórcio, o tom de acusação nas palavras da mãe
provinha dele, o filho, e não dela, a mãe traída, a mulher vingada. Ele, sim,
se sentia traído.
Talvez um dia se reconciliasse com
seu velho. Na verdade, nem sabia ao certo a idade que o pai deveria ter, nem por
que o odiava tanto.
Talvez um dia perdoasse seu pai, mas
não daquele perdão que as religiões pregam. Sim, de perdão mais humano, mais
visível, um perdão de quem sabe e sente quão precária e irrisória é uma vida
humana. Um perdão árduo, cheios de acusações. Mas ainda assim, um perdão. Uma
reconciliação possível, depois de tanto tempo de ausências e esperas.
Ele então ligaria para o pai, no dia
mesmo do Dia dos Pais, e, quando o outro atendesse perguntando quem era, ele, o
filho, simplesmente lhe diria:
- Tudo bem, pai, eu te perdoo... a
sua ausência... Estou pronto. Já posso te encontrar de novo.