domingo, 27 de dezembro de 2020

Girls do not dress for boys

Parte III
 
Droga, será que teremos alguma chance de nos aproximar. Um esbarrão "sem querer", uns pedidos de desculpas desajeitados, uns toques de mãos bem sutis, quase só um roçar tão de leve que só sentiríamos uma sensação estranha, gostosa, de um atrito imperceptível. Eu te pediria desculpas mais uma vez por ter derramado parte da sua bebida na sua roupa, bem em cima da frase estampada, deixando uma mancha na palavra "dress". Você me diria "não, tudo bem, não foi nada". Eu tentaria limpar a sua blusa mas então perceberia que não seria nada educado uma vez que a palavra manchada estava bem na altura do seu seio. Eu ficaria parado na sua frente, com um pedaço de um guardanapo ou um pano qualquer, fazendo gestos desconexos, até que você perceberia meu embaraço e diria "pode deixar que eu mesma limpo". Trocaríamos olhares ingênuos, maliciosos, daquele tipo de malícia tão casual que chega a se confundir com a ingenuidade de dois namoradas adolescentes descobrindo o gesto delicado do amor, o doce gosto da atração. Uma de suas amigas lhe chamaria, perguntando sem interesse o que estaria acontecendo. Você diria "já vou, não foi nada". Eu só te olhando, observando a cena como se não fizesse parte dela. Você olharia para mim ainda mais uma vez sorrindo, talvez por educação, ou por não saber exatamente como agir, ou simplesmente porque seria o único gesto possível diante de uma situação trivial. Eu te diria meu nome. Mas você não ouviria, pois já estaria se virando em direção a suas amigas enquanto sussurraria um "até". Essa seria a palavra que me atormentaria a noite inteira, semanas, meses, anos... "Até", até que não houvesse mais razão para eu ficar adiando de chegar em você; até que talvez nem tudo seria um desastre sentimental depois de uma rejeição direta e honesta; até que eu me convencesse de que eu realmente te queria mas por não saber como te dizer isso, eu correria um risco enorme de ficar me remoendo num vendaval de suposições improváveis ignorando completamente o fato mais importante disso tudo: o encontro entre duas pessoas nesse mundo já é um evento suficientemente raro para que eu tentasse impor mais uma variável de impossibilidade para que nada acontecesse e tudo fosse apenas isso, um devaneio de um cara sozinho numa festa, num bar. Você me sorri de longe. Dessa vez não há dúvida, pois está olhando diretamente para mim. Eu penso, meio bobo, meio orgulhoso, que cara de sorte que eu sou. Vou ao seu encontro. A partir de agora dançamos sem saber com o destino. Quem sabe que história iremos escrever juntos. Talvez seja imprudência da minha parte, mas a primeira coisa que vou te dizer é que gostei da sua camisa.

Garotas não se vestem para garatos

Parte II
 
Você me olha, rápido, de relance, como quem olha para um ponto específico mas precisa fingir que está só observando despretensiosamente o espaço ao redor. Estou sorrindo, feito um idiota. Sozinho. Um copo na mão. Já nem lembro que bebida é essa. Vai ver já estou agindo sob o efeito do álcool - ah, essa velha desculpa... Vai ver esse meu interesse por você, por conta de uma frase numa camisa, seja só a desculpa que eu preciso para justificar para mim mesmo algo que eu mesmo nem sei como funciona bem. Essa coisa, sabe, de atração e conquista. Posso até usar o termo amor, mas sei que é de forma imprecisa. Sei que não é isso, pelo menos não ainda. Que idiota que eu sou. Mantenho um diálogo com você em pensamento, enquanto isso a festa segue solta, pessoas curtindo, dançando... Você segura o copo com sua bebida misteriosa azul. Cintilante. Nem te conheço direito, nem mesmo sei o seu nome, mas já tenho uma listinha incompleta sobre os seus trejeitos que mais gosto: você parece realmente interessada em ouvir os outros, percebo que, quando suas amigas falam diretamente para você, você mantém o gesto de levar o copo à boca suspenso até que a pessoa conclua o que está lhe dizendo, e só então, após um comentário, você retoma o gesto que estava fazendo; outra coisa que já notei é que você ajeita os cabelos de tempos em tempos, ajeitando-os atrás das orelhas, por sinal, belas orelhas, sustentam um par de brincos delicados, o pingente parece ser algum animal ou talvez seja uma estrela. Não sei. Já disse, dessa distância mal consigo distinguir um sentimento de outro. Miopia sentimental, afetiva. Só me resta te idealizar, achando estúpido elogiar as orelhas de alguém. A pessoa elogiada pode ver nisso um sinal velado de algum fetiche depravado. Juro que não, não é isso... Também adoro o modo como você se prepara para sorrir. Alguém lhe diz algo e logo sorrir, os dentes às mostras, a boca aberta. Você não, você primeiro faz um semi-biquinho com os seus lábios miúdos, você fecha os olhos por um milésimo de segundo e, ao abri-los, aí sim, você sorrir, um sorriso lindo, meigo... Queria tanto te beijar. Minha nossa, não posso, não devo pensar essas coisas. Nós nem nos conhecemos. Se soubesse desses meus devaneios, provavelmente me acharia um depravado piegas, desses que estão à solta por aí.

Garotas não se vestem para garotos

Parte I
 
Se estivéssemos em outro lugar, e eu te visse com essa camisa, certamente te chamaria pra sair. Claro que precisaria de um tempo considerável até conseguir reunir o mínimo necessário de coragem e desfaçatez para chegar numa mulher que está usando uma blusinha com uma estampa visivelmente com dizeres feministas, quase como se essas palavras estampadas - "girls do not dress for boys" - fosse um aviso, um alerta para possíveis impertinentes, ou servisse como um escudo contra possíveis ataques de sujeitos sem noção.

Talvez fosse mais sensato não chegar em você. Seu aviso é direto, claro, objetivo. "Garotas não se vestem para garotos"... Mas se você não queria ser abordada, se não queria que alguém chegasse em você num lugar como este, um bar, onde a maioria das pessoas vão para se refugiar de seus problemas cotidianos e buscar o consolo de companhias ainda que passageiras, por que então ir com um aviso estampado no peito que queria dizer, em outras palavras, "olha, estou aqui, vestida assim, com meus amigos e minhas amigas, mas não ache que estou vestida assim porque quero impressionar você e os de sua espécie"? Tudo bem, admito, estou projetando e idealizando demais. Talvez você nem importasse de ser chamada por um cara assim como eu para conversar e beber algo (não que eu seja um cara tão especial ou diferente assim de outros). Talvez, talvez eu só esteja alimentando essa tendência masculina em achar que sempre devemos puxar conversa com uma mulher, por acreditar piamente que ela tem meio que a obrigação de nos corresponder e aceitar nosso convite. Que ideia mais machista e estúpida, não é mesmo.

Desculpe esse meio jeito, teorizo em excesso, e a verdade é que te notei já faz um tempão mas ainda não tive coragem, ou melhor, ainda não achei o "melhor jeito" de falar com você.

Todos aqui estão vestidos para garotos e garotas, moças e rapazes, homens e mulheres. As nossas roupas são nossa plumagem, é o modo como imitamos a natureza na sua habilidade de criar características que envolvam dois seres (ou mais, não sei...) para gerar atração, acasalamento, vida. Nos vestimos sempre preocupados com o olhar alheio, o que vão pensar de nós, como irão olhar para nós por estarmos usando aquela calça e aquela blusa, ou aquele sapato e aquele vestido. Somos narcisos admirados com a nossa própria imagem refletida no olhar do outro, no modo como o outro deixa evidente que nos olha. Você percebeu que eu estou já há um tempo te observando, meio sem jeito, achando que estou sendo discreto mas no fundo nós dois sabemos o que está acontecendo. Quer dizer, eu acho que você já notou meus olhares insistentes, curiosos, desejosos a seu respeito. Merda. Queria tanto poder chegar até aí, até onde você está, te fazer um elogio, que é a primeira alternativa que temos nessas situações antes de conhecermos mais a fundo uma pessoa que possa ter despertado algo na gente e então usarmos de outros "artifícios" de conquista. Fico curioso, querendo saber o que você está bebendo. Parece algo meio azul, não sei, dessa distância, minha inabilidade para distinguir cores é uma miopia preocupante. Certamente é alguma bebida doce. Não lembro de nenhuma bebida destilada com esse tipo de coloração. Não que eu seja um expert em drinques e bebidas e coisa e tal. Só estou deixando os pensamentos seguirem num fluxo contínuo, quem sabe eles não me levam direto até você. Acho graça dessas coisas na minha cabeça, meus pensamentos.