(...) um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos dos traços de um anti-herói, e, principalmente, todo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos.”
Memórias do Subsolo, Dostoiévski
As memórias acabam sem terem terminado. O narrador nos diz em
poucas palavras que é melhor termina-las ali onde se resolveu encerra-las. É a
partir daí que as memórias recomeçam, não exatamente no livro, mas sim em nós,
leitores dessa história cheia de “verdades ignóbeis” e do “belo e sublime”.
Perguntamo-nos perplexos sobre a natureza, sobre a possível mistura
de sentimentos, impressões e julgamentos a respeito desse personagem/narrador que
ora nos parece um legítimo herói de um romance, ora um sujeito vil, um anti-herói.
O narrador/personagem está, em diferentes momentos, nos
lembrando que tudo aquilo que se está narrando como tendo sido vivido, não
passa, até certo ponto, de mero recurso estilístico, literário a serviço de um
esforço “subterrâneo” de garantir aos fatos narrados alguma dignidade
artística, ainda que ambígua, pois os acontecimentos, por vezes, mostram-se nos
seus mais prosaicos e desinteressantes detalhes (talvez isso se dê mais por
culpa do escritor do que do narrador, já que aquele ganhava por laudas, pela
quantidade que escrevia).
Devemos levar a sério tudo isso que nos está sendo contado?
Quer dizer, devemos nos “co-mover” e
nos deixar afetar pelos fatos biográficos desse sujeito, igualmente, tão vil
quanto terno? Sua franqueza, ou ao menos sua pretensa franqueza, merece nossa
credulidade, uma vez que ele mesmo nos diz ter dissimulado sentimentos e
atitudes por várias vezes em sua vida? Se formos leitores acostumados ao gênero
literário, então acreditamos que sim, que vale a pena deixar-se conduzir pelos
meandros subterrâneos desse homem-subsolo, que vem a ser ou ter muito de nós
mesmos no que diz respeito às sublimidades e vilezas humanas. Além do mais, a
narrativa é conduzida de modo impecável, alternando passagens de divertido
sarcasmo e ironia com outros de repulsiva e, talvez, exagerada franqueza.
Somos convidados, de modo um tanto peculiar, a acompanharmos esse
labirinto subterrâneo no qual somos, a um só tempo, arquitetos e prisioneiros.
E a Literatura pode ser esse tênue e perene fio pelo qual podemos nos enredar e
nos guiar. Mas atenção, não se engane, ingênuo leitor, pois este artifício literário
pode ser usado para fazê-lo se perder incontornavelmente por esse intrincado
labirinto que é a mente humana, que é o próprio ser humano.