segunda-feira, 31 de julho de 2017

Das Memórias de um Subsolo

(...) um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos dos traços de um anti-herói, e, principalmente, todo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos.”  
Memórias do Subsolo, Dostoiévski 



    As memórias acabam sem terem terminado. O narrador nos diz em poucas palavras que é melhor termina-las ali onde se resolveu encerra-las. É a partir daí que as memórias recomeçam, não exatamente no livro, mas sim em nós, leitores dessa história cheia de “verdades ignóbeis” e do “belo e sublime”.

   Perguntamo-nos perplexos sobre a natureza, sobre a possível mistura de sentimentos, impressões e julgamentos a respeito desse personagem/narrador que ora nos parece um legítimo herói de um romance, ora um sujeito vil, um anti-herói.

   O narrador/personagem está, em diferentes momentos, nos lembrando que tudo aquilo que se está narrando como tendo sido vivido, não passa, até certo ponto, de mero recurso estilístico, literário a serviço de um esforço “subterrâneo” de garantir aos fatos narrados alguma dignidade artística, ainda que ambígua, pois os acontecimentos, por vezes, mostram-se nos seus mais prosaicos e desinteressantes detalhes (talvez isso se dê mais por culpa do escritor do que do narrador, já que aquele ganhava por laudas, pela quantidade que escrevia).

   Devemos levar a sério tudo isso que nos está sendo contado? Quer dizer, devemos nos “co-mover” e nos deixar afetar pelos fatos biográficos desse sujeito, igualmente, tão vil quanto terno? Sua franqueza, ou ao menos sua pretensa franqueza, merece nossa credulidade, uma vez que ele mesmo nos diz ter dissimulado sentimentos e atitudes por várias vezes em sua vida? Se formos leitores acostumados ao gênero literário, então acreditamos que sim, que vale a pena deixar-se conduzir pelos meandros subterrâneos desse homem-subsolo, que vem a ser ou ter muito de nós mesmos no que diz respeito às sublimidades e vilezas humanas. Além do mais, a narrativa é conduzida de modo impecável, alternando passagens de divertido sarcasmo e ironia com outros de repulsiva e, talvez, exagerada franqueza.

   Somos convidados, de modo um tanto peculiar, a acompanharmos esse labirinto subterrâneo no qual somos, a um só tempo, arquitetos e prisioneiros. E a Literatura pode ser esse tênue e perene fio pelo qual podemos nos enredar e nos guiar. Mas atenção, não se engane, ingênuo leitor, pois este artifício literário pode ser usado para fazê-lo se perder incontornavelmente por esse intrincado labirinto que é a mente humana, que é o próprio ser humano.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dorival e o Mar


"Dorival, vai não

Tá cheio de tubarão no mar

Val, vai não

Arranja um emprego no chão"

Dorival, Academia da Berlinda, álbum Nada Sem Ela


Eu sei, foi ele que trouxe você para mim. Mas Val, já pensou, ele quer te levar embora, te levar de mim. O que posso se não implorar que não vá, que não me deixes? O que pode uma simples mulher apaixonada, como eu, contra a força do Mar? Dorival, olhe, o mar é grandioso, não se pode negar. Mas é, também, cheios de artifícios. O bicho é manhoso. Quando ele mesmo não arrasta um pros seus domínios profundos, manda algum de seus: peixes encantados, sereias cantadoras, tubarões impiedosos. Não rias assim de mim. Se minhas palavras te parecem loucuras, baboseiras, lembra, lembra bem como foi que tu chegaste aqui, nesta ilha sem nome, de pescadores cegos e duma única mulher, que sou eu e que é tua, só tua.
Foi na manhã seguinte em que este aí, nesse movimento sem parar de braços de águas e de espumas salinas, que teu corpo foi trazido pra essas bandas. Ninguém tinha te visto. Só eu, naturalmente. A te arrastar em folhas de bananeira por esta areia quente. Cuidando de ti desde o primeiro momento em que meus olhos viram e recaíram sobre teu peito desnudo, teu ser indefeso jogado à beira do mar. Parecia até que ele, de raiva de ti, te judiou e te vomitou aqui, sem mais nem menos, ao não ser pra mostrar sua força marítima. Nem imagino o que tu fizeste. Só te digo uma coisa: foi sorte tua, mais ainda sorte minha. Te limpei dos ferimentos abertos pelos corais perigosos, te velei por tantas noites, acalmando teus sonhos de afogado e segurando tuas mãos de dedos, mesmo fracos, tão potentes, bebi da água dos teus pulmões encharcados e senti a quentura do liquido meio pegajoso e extremamente salgado que cuspias enquanto te debatias. Pra que essa cara? Quando se deseja muito alguém, como eu te desejo, Dorival, nem mesmo essas miudezas podem diminuir a intensidade, a dedicação, o meu querer. Por nenhum só momento eu pensei em te perder naqueles dias de vigília. Sabe, Seu Homero, aquele cego falador e contador de histórias, me disse, ao meu ver dedicando todo meu tempo a te salvar, que nós dois éramos como os personagens duma lenda antiga, que ele gostava de contar mas que as pessoas já tinham meio que esquecido dela, e que versava sobre um herói de guerra que só consegue retornar pra sua casa, esposa e família depois de muitos anos a pelejar pelos mares deste aí, enfrentando toda sorte de armadilhas e contratempos. Seu Homero não é de terminar suas histórias, e esta, que ele me contava, parou por aí, sem conclusão, e eu fiquei meio que sem entender.
Tou te falando, Val, vai não. Esse mar é como uma visão que tenta atrair os outros com beleza, mas que no seu fundo, lá onde suas águas e seus seres são feitos de sombras e formas estranhas, só tem maldade e morte. Se tu fores, olhe, por mais que eu não queira, nem acredite nisso, não precisas voltar. E eu queria muito acreditar que, no caso de tu não retornar pra mim, pra nossa ilha, isso se daria apenas por escolha tua, por tua vontade. Quem me dera acreditar realmente nisso, e, por mais que eu sofresse e chorasse, ainda assim haveria em mim uma faísca de consolo a me alentar o coração magoado. Mas não seria assim, homem, tou te falando. Tu entras nesse mar calmo e, assim que ele sentir tua presença sobre as costas dele, o bicho se revela como o verdadeiro monstro que é. Te arrasta, te leva embora, tu vai, eu sinto medo, sou capaz até de pegar pau, pedra e fogo pra forçar o miserável a te devolver pra mim. Duvida? Num duvide da capacidade duma mulher perdida em amores, na capacidade duma mulher desesperada, capaz de enfrentar a própria Natureza. Ele deve até me odiar me ouvindo falar assim. Pois não importa. É a ti que quero agradar mais que tudo. Meu nego.
        Sabia que esses homens tudo cego e feio diziam pra mim que tu eras um homem sem destino, um sujeito sem rumo, amaldiçoado pra sempre por conta da tua cor. Não sei como eles sabiam e sabem da tua cor. Uns tiveram a ousadia de me dizer que te percebiam pelo mau cheiro de negro desterrado. Imagine só, quanto desaforo. Fiquei possessa. Dei nas cabeças deles, e nunca mais nenhum me falou tais gracinhas. Eu gosto de ti como tu és, com a tua cor a me lembrar das noites mais bonitas quando eu sinto uma coisa incontrolável tomar conta de mim e querer correr por teus braços e só me acalmar pela manhã, rendida sobre teu peito, deitados na nossa cabaninha revirada. Por falar nisso, Dorival, sabes como a noite vai estar hoje? Sabe não, é? E num quer saber? Então fica, e eu te mostro. Só que dessa vez, a gente vai pra lá, pra pertinho do mar. Vamos mostrar pra ele a nossa força. Quero fazer inveja. E depois, se tu quiseres, aí sim, tu podes ir, ainda que meu coração grite em silêncio, tu podes ir pro alto mar. Mas se ele não te devolver, pois saiba, vai ter guerra, vai ter tantas batalhas e não sei quantos conflitos, que até mesmo Seu Homero vai se ver obrigado a recontar aquela lenda antiga, e o herói, dessa vez, vai ser eu, Val. Vamos ver se esse mar pode mais do que eu.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Stoner - A Vida de um Homem Comum

"William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910, com a idade de 19 anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial, recebeu o diploma de doutorado e assumiu um cargo na mesma universidade, onde lecionou até a sua morte, em 1956. Nunca subiu na carreira acima da posição de professor assistente, e poucos estudantes se lembravam dele com alguma nitidez após terem cursado suas disciplinas. Quando morreu, seus colegas doaram à biblioteca da universidade um manuscrito medieval em sua memória."
Stoner, John Williams, página 7, editora Rádio Londres, 2015


Por que um livro, uma obra, um romance sobre um sujeito que não teve nada de excepcional em seus mais de 60 anos?

 Por que contar a história de um homem que abandona um curso de ciências agrárias, que teria aplicação prática e imediata para o seu sustento próprio e de sua família; que troca esse curso pelo de Letras após uma epifania durante uma aula sobre Shakespeare; torna-se professor na mesma instituição Universitária onde, anos antes, fora um aluno regular, mediano; casa-se com uma mulher que irá atormenta-lo ao longo dos anos de casamento; viverá os temores e dilemas de duas guerras mundiais; terá um desentendimento irreversível com um colega de trabalho, que fará de tudo para prejudica-lo sempre que possível; irá viver uma paixão avassaladora e extraconjugal, da qual, terá que abrir mão após as pressões sociais e morais; e que, restando-lhe apenas dois anos para sua aposentadoria, descobre que está com um câncer maligno e morre, segurando um livro de sua autoria?

Stoner é, antes de tudo, um estoico, um sujeito que, apesar dos inúmeros reveses que se apresentam ao longo de seu caminho, prefere ou permite ou deixa, simplesmente, as coisas acontecerem ao bel prazer das circunstâncias, aos caprichos insondáveis do Destino.

A cada nova situação, na qual, ele se encontra tendo que confrontar desejos próprios e convenções sociais, você se pergunta, desapontado, mas ao mesmo tempo condescendente, qual ou quais teriam sido as reais motivações de Stoner para seguir tal caminho e não outro, também plausível, e, até certo ponto, ver sua existência tomar rumos que poderiam ser evitados. Você, então, se sente frustrado com as escolhas do nosso protagonista e as consequências delas, para logo em seguida sentir uma espécie de comoção e empatia pelo ritmo lento e banal com que nosso personagem segue sua trajetória. É quase inevitável não sentir essa mistura de sentimentos antagonistas com a condição, cada vez mais, autodestrutiva de Stoner. Os efeitos das escolhas dele nos parecem óbvios, pois, ainda que envolvidos com sua história, estamos acompanhando esse drama de lado de fora. Estamos numa posição confortável para emitirmos julgamentos de ordem moral quanto aos seus posicionamentos. No entanto, se pararmos, um pouco que seja, para avaliarmos todas as variantes possíveis de decisão do nosso herói, deparamo-nos com um leque não muito variado de possibilidades, e, para nossa surpresa ou não, um desses possíveis caminhos é justamente o que Stoner resolveu deixar sua vida se encaminhar. Como podemos condená-lo então?

No romance temos um par de forças, contrárias e complementares, a saber, o amor e a guerra, que parecem ser um dos poucos elementos capazes de interferir, significativamente, no cotidiano ordinário de Stoner, restando a este a perplexidade estoica diante dos acontecimentos que vão se desenrolando a sua frente e o arrastando, impiedosamente, para um destino sem volta, para uma aniquilação gradual de sua pessoa, ainda que a iminência da morte proporcione uma reconciliação com seu passado, com sua esposa, com sua filha, com a existência que viveu e consigo mesmo.

Talvez não seja mero recurso narrativo colocar como pano de fundo dessa história banal os dois grandes conflitos mundiais, pois, durante esse contexto é “inaugurado” o chamado romance moderno,  que tem como uma das principais marcas obras que retratam a existência, sem grandes feitos de coragem e heroísmo, do chamado homem moderno.

    Talvez, imersos nesse mundo cada vez mais automatizado e rotineiro, e, ao mesmo tempo, como parte integrantes e ativas dele, o que nos resta, além do estoicismo de Stoner e sua dedicação,l seja esperarmos sem muita expectativa por um epitáfio singelo numa lápide sem ornamentos elaborados ou uma dedicatória laudatório em nossa homenagem, ainda que simples, em alguma obra de relevância questionável e já consagrada do acervo de uma biblioteca.

   Ou ainda, provavelmente, ninguém se lembrará da gente com alguma nitidez, e nossa memória irá se diluir, gradativamente, num esquecimento puro, autêntico, comovente, como essa história de um homem comum chamado Stoner.

domingo, 2 de julho de 2017

A Utopia das Distopias

“Nós estamos legando ao futuro bens de consumo fossilizados. Roupas, carros, aparelhos eletrônicos, e milhares de outros produtos, úteis e inúteis, que marcam esta civilização.”

Distopia e ficção científica andam quase sempre juntas. Às vezes, de modo indistinguível. Basta pensarmos ou lembrarmos de livros como 1984 de George Orwell, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Todos eles já consolidados como clássicos da Literatura Ocidental. Sem dúvidas, obras de relevância literária e político-social. Distopias nas quais as “pessoas” são “fabricadas” e educadas com características sociais e psicológicas pré-determinadas, para viverem em sociedades onde, não só os alimentos são deliberadamente racionados, mas também o conhecimento, ou melhor, o acesso ao saber, ao legado cultural, à História, pois, ou o passado está em constante “reconstrução” pelo Estado, ou as obras pelas quais seria possível conhecer um pouco mais sobre o conhecimento acumulado pela nossa espécie são impiedosamente destruídas pelas chamas da ignorância e intolerância de bombeiros incendiários.

Enredos, certamente, conhecidos por uma boa gama de leitores.

Agora, o que pouca gente deve saber ou conhecer é um livro de um autor brasileiro, no qual, distopia e ficção científica estão intricadas num retrato desolador de uma nação autoritária, de um certo país do futuro.

Não Verás País Nenhum, do escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi lançado em 1981. Nele, acompanhamos o personagem Souza, ex-professor de História, aposentado compulsoriamente pelo governo vigente, e que agora trabalha como burocrata pelo regime oficial. Sua resignação ao status quo começa a tomar rumos diferentes quando, certo dia, ele acorda com um furo no meio da mão. Este furo pode ser entendido de diversas formas, conforme a história avança. Pode ser simplesmente um problema físico, material, prático, psicológico, talvez decorrente das péssimas condições a que a população está submetida. Ou, uma espécie de metáfora pela qual se quer expressar que algo foi arrancado da vida de Souza, e das demais personagens a viver sob tal situação. O buraco também pode ser visto como uma possibilidade, uma passagem, um portal, uma janela pela qual o personagem pode ver, finalmente, o mundo a sua volta e, daí, vislumbrar, quem sabe, uma guinada em sua existência.

Souza e sua esposa Adelaide vivem em São Paulo. No livro, a cidade, assim como todas as demais, está desmantelada social e ecologicamente pelos avanços tecnológicos empregados de forma irresponsável, dos quais resultaram em falta de água, desmatamento da natureza e cerceamento de pensamento, de expressão, de individualidade. O cheiro mais comum é o de carne podre dos cadáveres a tostar sob o calor escaldante. Nesse cenário, o insólito, o irracional, o desumano é o corriqueiro, o banal. As pessoas menos privilegiadas bebem urina reciclada, só andam por determinados lugares, que são delimitados hierarquicamente de acordo com o status social de cada estrato, e que estão constantemente superlotados, ao ponto de elas terem que andar a passos curtíssimos, como se fossem um rebanho obstinado a caminho do abatedouro.

      Este livro é realmente de 1981?! Mas como é possível, se fala de temas tão contemporâneos, como a crise hídrica, a escassez de alimentos, o total descaso com o meio ambiente, aquecimento global, as dificuldades de mobilidade urbana... etc.?

      Uma obra perene, profética e desafiadora, como deve ser todo bom livro de Literatura, seja ele um romance distópico ou uma ficção científica.