sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dorival e o Mar


"Dorival, vai não

Tá cheio de tubarão no mar

Val, vai não

Arranja um emprego no chão"

Dorival, Academia da Berlinda, álbum Nada Sem Ela


Eu sei, foi ele que trouxe você para mim. Mas Val, já pensou, ele quer te levar embora, te levar de mim. O que posso se não implorar que não vá, que não me deixes? O que pode uma simples mulher apaixonada, como eu, contra a força do Mar? Dorival, olhe, o mar é grandioso, não se pode negar. Mas é, também, cheios de artifícios. O bicho é manhoso. Quando ele mesmo não arrasta um pros seus domínios profundos, manda algum de seus: peixes encantados, sereias cantadoras, tubarões impiedosos. Não rias assim de mim. Se minhas palavras te parecem loucuras, baboseiras, lembra, lembra bem como foi que tu chegaste aqui, nesta ilha sem nome, de pescadores cegos e duma única mulher, que sou eu e que é tua, só tua.
Foi na manhã seguinte em que este aí, nesse movimento sem parar de braços de águas e de espumas salinas, que teu corpo foi trazido pra essas bandas. Ninguém tinha te visto. Só eu, naturalmente. A te arrastar em folhas de bananeira por esta areia quente. Cuidando de ti desde o primeiro momento em que meus olhos viram e recaíram sobre teu peito desnudo, teu ser indefeso jogado à beira do mar. Parecia até que ele, de raiva de ti, te judiou e te vomitou aqui, sem mais nem menos, ao não ser pra mostrar sua força marítima. Nem imagino o que tu fizeste. Só te digo uma coisa: foi sorte tua, mais ainda sorte minha. Te limpei dos ferimentos abertos pelos corais perigosos, te velei por tantas noites, acalmando teus sonhos de afogado e segurando tuas mãos de dedos, mesmo fracos, tão potentes, bebi da água dos teus pulmões encharcados e senti a quentura do liquido meio pegajoso e extremamente salgado que cuspias enquanto te debatias. Pra que essa cara? Quando se deseja muito alguém, como eu te desejo, Dorival, nem mesmo essas miudezas podem diminuir a intensidade, a dedicação, o meu querer. Por nenhum só momento eu pensei em te perder naqueles dias de vigília. Sabe, Seu Homero, aquele cego falador e contador de histórias, me disse, ao meu ver dedicando todo meu tempo a te salvar, que nós dois éramos como os personagens duma lenda antiga, que ele gostava de contar mas que as pessoas já tinham meio que esquecido dela, e que versava sobre um herói de guerra que só consegue retornar pra sua casa, esposa e família depois de muitos anos a pelejar pelos mares deste aí, enfrentando toda sorte de armadilhas e contratempos. Seu Homero não é de terminar suas histórias, e esta, que ele me contava, parou por aí, sem conclusão, e eu fiquei meio que sem entender.
Tou te falando, Val, vai não. Esse mar é como uma visão que tenta atrair os outros com beleza, mas que no seu fundo, lá onde suas águas e seus seres são feitos de sombras e formas estranhas, só tem maldade e morte. Se tu fores, olhe, por mais que eu não queira, nem acredite nisso, não precisas voltar. E eu queria muito acreditar que, no caso de tu não retornar pra mim, pra nossa ilha, isso se daria apenas por escolha tua, por tua vontade. Quem me dera acreditar realmente nisso, e, por mais que eu sofresse e chorasse, ainda assim haveria em mim uma faísca de consolo a me alentar o coração magoado. Mas não seria assim, homem, tou te falando. Tu entras nesse mar calmo e, assim que ele sentir tua presença sobre as costas dele, o bicho se revela como o verdadeiro monstro que é. Te arrasta, te leva embora, tu vai, eu sinto medo, sou capaz até de pegar pau, pedra e fogo pra forçar o miserável a te devolver pra mim. Duvida? Num duvide da capacidade duma mulher perdida em amores, na capacidade duma mulher desesperada, capaz de enfrentar a própria Natureza. Ele deve até me odiar me ouvindo falar assim. Pois não importa. É a ti que quero agradar mais que tudo. Meu nego.
        Sabia que esses homens tudo cego e feio diziam pra mim que tu eras um homem sem destino, um sujeito sem rumo, amaldiçoado pra sempre por conta da tua cor. Não sei como eles sabiam e sabem da tua cor. Uns tiveram a ousadia de me dizer que te percebiam pelo mau cheiro de negro desterrado. Imagine só, quanto desaforo. Fiquei possessa. Dei nas cabeças deles, e nunca mais nenhum me falou tais gracinhas. Eu gosto de ti como tu és, com a tua cor a me lembrar das noites mais bonitas quando eu sinto uma coisa incontrolável tomar conta de mim e querer correr por teus braços e só me acalmar pela manhã, rendida sobre teu peito, deitados na nossa cabaninha revirada. Por falar nisso, Dorival, sabes como a noite vai estar hoje? Sabe não, é? E num quer saber? Então fica, e eu te mostro. Só que dessa vez, a gente vai pra lá, pra pertinho do mar. Vamos mostrar pra ele a nossa força. Quero fazer inveja. E depois, se tu quiseres, aí sim, tu podes ir, ainda que meu coração grite em silêncio, tu podes ir pro alto mar. Mas se ele não te devolver, pois saiba, vai ter guerra, vai ter tantas batalhas e não sei quantos conflitos, que até mesmo Seu Homero vai se ver obrigado a recontar aquela lenda antiga, e o herói, dessa vez, vai ser eu, Val. Vamos ver se esse mar pode mais do que eu.

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