“Nós estamos legando ao futuro bens de consumo fossilizados. Roupas,
carros, aparelhos eletrônicos, e milhares de outros produtos, úteis e inúteis,
que marcam esta civilização.”
Distopia e
ficção científica andam quase sempre juntas. Às vezes, de modo indistinguível.
Basta pensarmos ou lembrarmos de livros como 1984 de George Orwell, Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.
Todos eles já consolidados como clássicos da Literatura Ocidental. Sem dúvidas,
obras de relevância literária e político-social. Distopias nas quais as
“pessoas” são “fabricadas” e educadas com características sociais e
psicológicas pré-determinadas, para viverem em sociedades onde, não só os
alimentos são deliberadamente racionados, mas também o conhecimento, ou melhor,
o acesso ao saber, ao legado cultural, à História, pois, ou o passado está em
constante “reconstrução” pelo Estado, ou as obras pelas quais seria possível conhecer
um pouco mais sobre o conhecimento acumulado pela nossa espécie são
impiedosamente destruídas pelas chamas da ignorância e intolerância de
bombeiros incendiários.
Enredos,
certamente, conhecidos por uma boa gama de leitores.
Agora, o que
pouca gente deve saber ou conhecer é um livro de um autor brasileiro, no qual,
distopia e ficção científica estão intricadas num retrato desolador de uma
nação autoritária, de um certo país do futuro.
Não
Verás País Nenhum, do escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi lançado
em 1981. Nele, acompanhamos o personagem Souza, ex-professor de História,
aposentado compulsoriamente pelo governo vigente, e que agora trabalha como
burocrata pelo regime oficial. Sua resignação ao status quo começa a tomar rumos diferentes quando, certo dia, ele
acorda com um furo no meio da mão. Este furo pode ser entendido de diversas
formas, conforme a história avança. Pode ser simplesmente um problema físico,
material, prático, psicológico, talvez decorrente das péssimas condições a que
a população está submetida. Ou, uma espécie de metáfora pela qual se quer
expressar que algo foi arrancado da vida de Souza, e das demais personagens a
viver sob tal situação. O buraco também pode ser visto como uma possibilidade,
uma passagem, um portal, uma janela pela qual o personagem pode ver,
finalmente, o mundo a sua volta e, daí, vislumbrar, quem sabe, uma guinada em
sua existência.
Souza e sua
esposa Adelaide vivem em São Paulo. No livro, a cidade, assim como todas as
demais, está desmantelada social e ecologicamente pelos avanços tecnológicos
empregados de forma irresponsável, dos quais resultaram em falta de água, desmatamento
da natureza e cerceamento de pensamento, de expressão, de individualidade. O
cheiro mais comum é o de carne podre dos cadáveres a tostar sob o calor
escaldante. Nesse cenário, o insólito, o irracional, o desumano é o
corriqueiro, o banal. As pessoas menos privilegiadas bebem urina reciclada, só
andam por determinados lugares, que são delimitados hierarquicamente de acordo
com o status social de cada estrato, e que estão constantemente
superlotados, ao ponto de elas terem que andar a passos curtíssimos, como se
fossem um rebanho obstinado a caminho do abatedouro.
Este livro é realmente de 1981?! Mas como é possível, se
fala de temas tão contemporâneos, como a crise hídrica, a escassez de
alimentos, o total descaso com o meio ambiente, aquecimento global, as
dificuldades de mobilidade urbana... etc.?
Uma obra perene, profética e desafiadora, como deve ser todo
bom livro de Literatura, seja ele um romance distópico ou uma ficção
científica.
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