sexta-feira, 18 de julho de 2014

ANSEIO SUICÍDA

Desde a tardia adolescência
quando senti pela primeira vez
            a perda
um pensamento se apoderou de mim
recôndito 
            em minha cabeça

Um pensamento mórbido, obsessivo
por vezes passageiro
por outras, impreciso
Um pensamento tal dum extremo teor
                 corrosivo

Estranhamente libertador

Mário Sá-Carneiro quem o diga
já que sempre se mostrou
atormentado por essa ideia
de total aniquilação do ser

Minha língua até vacila
Chego mesmo a estremecer
como se em palavras se concretizasse
esse anseio maldito
cínico sem humor
de que só mesmo a Morte

de matar-se tem valor

quarta-feira, 9 de julho de 2014

TRILOGIA NARCISO

Parte I

A Contemplação de Si Mesmo

Vislumbro entre as águas claras
e ondeantes desse mar espelhado
um rosto, um rosto tão lindo:
olhos fundos, lúbricos, órbitas lívidas, negras
a tez vermelha como telúrico barro
a testa lustrosa
o maxilar arrendondado, perfeito
uma penugem rara
um buço incipiente
as sobrancelhas curvadas
sobre cada forma do olhar
os cílios – um véu de filamentos
negros e grandes
o nariz afilado
de narinas levemente dilatadas
os lábios pequenos e serenos
contornando a boca maliciosa
E a expressão tão fascinante
alucinada
esboçando seu silêncio...


(Ah, como é doce esse contemplar! Não preciso de mais nada. Só quero passar a eternidade presente contemplando minha face nesse espelho d'água)

Parte II

A Metamorfose

Minha cabeça feneceu sobre a terra
e minhas mãos e meus pés
sulcaram o solo
e se enraizaram nele
Meus cabelos mergulharam em sulcos de barro
e medraram úmidos e viçosos
Todo meu corpo
consumido com ferocidade
pela Natureza onívora
desabrochou na estação primeva
E hoje meu ser exala essências
coloridas, extasiantes -
bálsamos dum perfume enegrecido
E todos me conhecem pelo nome
             de Flor-Narciso

Parte III

Vi meu amável rosto
             em chamas
             em labaredas
sendo forjado pelo fogo infame
             da tristeza

            Soltei um grito...

Acordei sobressaltado
ansioso por ver minha face
em qualquer reflexo
do meu sombrio quarto

Vi num espelho invertido
no teto escabroso e alto
minha imagem possessa estertorando
gargalhadas de “Maldito! Maldito!”

Apalpei com desespero
meu intangível rosto
Quando dei por mim
já estava torto
pela fealdade severa
daquele fogo fátuo...