quinta-feira, 6 de novembro de 2014

CHÁ DE POEJO

“Sente-se e beba chá de poejo
Destile a vida que está dentro de mim”
Pennyroyal Tea, Nirvana

O hálito quente de chá de poejo. A tosse seca. Não curou o chiado do peito. Nem amenizou a pressão. O aroma da erva. Daqui – à janela do sétimo andar. A luz desperdiçando o sol da manhã.  Sua imagem. No outdoor com moldura de madeira fina. “Informe publicitário: O direito à vida é inalienável”. Difícil mesmo foi ter que te levar naquele lugar. Bairro decente de subúrbio, desses em que o silêncio das ruas abafa os gritos de dor dos seus moradores. Não fosse a indicação exata da amiga, como acharíamos. Como é mesmo que se diz? Pensei num cartaz, um projeto gráfico. Sua expressão melancólica ampliada desproporcionalmente num zoom antirromântico. A pele rugosa das imperfeições do grude. Usaram rolos e baldes pra montar seu ideogramafacial.  Nesse porta-retratos de autoestrada. Na frente do prédio. Atrás do mar. Anunciando você. Perdeu-se de mim. “Paga-se bem por qualquer informação que possa...” Se publicar? Com essa nova Lei, quem sabe ninguém nem veja. Logo ao fundo é possível ver o esqueleto inerte de mais um prédio em construção. Seus olhos fugitivos de mim, em ângulo desfavorável à vista. Podia ligar na agência e reclamar e pedir meu dinheiro de volta. Esses moleques coladores. Rugas e estrias. Colagem mais malfeita. O espaço quase imperceptível no canto dos olhos. A impressão de quem desvia o olhar. Ao longe, na paisagem desconforme, a borra do chá no fundo do bule, no fundo da calcinha. Chá. Chão. Xá de alumínio. Chicára de porcelana. O contorno do copo pura poeira. O colchão no assoalho. Deitado com a máquina no tripé desnivelado. Seu olhar em foco. Descarregada. Sem click. Da lente fotográfica, olho no olho. Meu olho na lente dentro do seu olho. Se chover, ventar forte demais por muito tempo, sua pele de papel pode se desfazer. Feito feto escorrendo pelas pernas. Que loucura pensar nisso logo agora. Seu rosto pálido. Envelhecido. Reflexo mudo na parede do banheiro. Olhos lacrimejando. Xá-preto com coca. Para acompanhar, biscoitos placebos. Nosso filho perdido. Nos postes perto da clínica, restos de panfletos com palavras de protestos. Direito à vida... Fetos... Vidas... Merecem nascer... Amor materno. Secreto. Quem sabe, um diário escolar maldizendo os pais em garranchos revoltosos, nos acusando por tê-lo colocado nesse mundo contra sua vontade. Espermas também têm direito aos direitos humanos. Consciência insciente, rebelde. Fixei você num outdoor. Out dor. Infusão uterina. Chá-de-bebê. Noves meses sem encontrar você. “... não tem preço...”, dizeres de um anúncio na rádio. Pra te procurar daqui. De máquina na mão. Janela do Sétimo Andar. Tão estático como água fundida no solo. In útero inchado. Saquinhos de choro. Consolo. Sem ninguém pra adular. O que eu quis foi te proteger. Risco de deixar você sozinha. Naquele estado. Não tinha como a gente saber. Seguir a tabela. Em letras minúsculas: não contém glúten nem gordura trans. Reações adversas: efeito abortivo em ingestão com coca. Gestação. Quem diria que um simples costume milenar poderia afetar um feto. Água barrenta. Sem afeto. Um girino a coachar no bulebrejo. COAR-CHÁ! COAR-CHÁ! O choro agudo e insistente. Num cesto. A sair do útero para um cesto de lixo. O céu sem nuvens. Chárope expectorante. Antibiótico faz acelerar o coração. Já o tempo. Quando chegarem, encontrarão um recado sem assinatura no espelho pregado logo acima da pia do banheiro. Apaguem as luzes pra não ter que verem dentro da privada pedaços amorfos se desfazendo líquidos, vermelhos, lamacentos. Limpem o cinzeiro cheio de parafina e incenso. Cubram os pequeninos restos mortais em plástico bolha. Eu vou ficar. Até permanecer longamente... até que substituam sua imagem-cartaz por um anúncio qualquer de empreendimento domiciliar com uma família feliz. Casas. Apartamentos. Filhos. Apartar do peito os sofrimentos. Ir atrás de você escorrendo com nosso filho pelo ralo. Vai fugir de mim? Água fria, bolacha murcha. Melhor deixar a mesa pronta caso você resolva voltar hoje à noite, ou quem sabe amanhã enquanto durmo. Sem sonhar. Vejo tudo. Da janela, do sétimo andar, eles me acenam lá de baixo. Estão me chamando. Parecem feliz. 

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Quando se é Jovem

quando se é jovem, e se pensa que mudará o mundo/ e solucionará os problemas sociais do seu país/ que se defenderá uma causa e carregará uma bandeira/ então todo o seu corpo e sua mente ficam fervorosos/ desejando mudanças revoluções soluções/ E, de tanto anseio, as inquietudes lhe fazem sofrer/ as mazelas parecem infindáveis/ as angústias atormentam seus pensamentos/ a miséria a fome a desigualdade/ insinuam-se mais provocantes/ E os momentos de desânimo/ de querer se entregar/ são ainda mais perturbadores/ Inicia-se, então, uma luta árdua, ferrenha, entre a realidade do Caos e a beleza dos sonhos... quando se é jovem

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

ALDEIA GLOBAL

ah, mundo, mundo
um dia já foste vasto
e tiveste um vate chamado Raimundo

mas hoje em dia
és apenas uma aldeia global
uma aldeia global toda paliçada
de fibras óticas e cordões umbilicais
e já não há quem ainda te ache assim tão-vasto
e o teu vate, sem disparate
nem rima mais com teu nome

ah, mundo, mundo
pequena aldeia global
se fostes ainda vasto
e te chamaste Mundo
eu até que poderia ser

o teu mineiro Raimundo

domingo, 7 de setembro de 2014

7 DE SETEMBRO

que dia é 7 de setembro?

       eu nem me lembro

desses remorsos que são a História

          dia luta?

        dia de glória?

      Já nem me lembro


escassez da memória

terça-feira, 2 de setembro de 2014

TERRA DE HIPÓCRITAS

A Lua finge iluminar a Terra
O Sol finge aquecer a Terra
    A terra finge que é Terra

A água finge saciar toda a sede da Terra
Os políticos fingem administrar a terra
O povo finge ser feliz
e acreditar no progresso da terra
A Terra finge progredir
    A Terra finge que é terra

Os Impérios democráticos
fingem levar a democracia para a terra
A ONU finge tentar impedir os Impérios
de quererem dominar toda a terra
    A Terra finge que é Terra

A juventude finge ser o futuro da terra
A terra finge dar frutos para a Terra
O Homem finge que a Terra
é a terra que ele quer
A terra finge que é terra

    E tudo finge ser o que (não) é

terça-feira, 26 de agosto de 2014

ESCRITOS PANFLETÁRIOS

O Novo Sonho

Hoje é o dia pra sonhar/ Não levanta da sua cama/ não levante do chão/ Fique onde está/ Porque hoje é o dia feito sonho/ Hoje é o dia pra sonhar

Arranhe as janelas de vidro/ com suas unhas de metal/ Feche os céus lá fora/ Cubra todos os móveis/ com cortinas de nuvens/ Coma as flores e os objetos/ Encoste a cabeça no solo/ e sinta o palpitar dos ruídos/ vindos das ruas/ vindos de longe/ vindos de perto/ vindos dos sonhos

Hoje o dia não vai ser tão-lindo/ Hoje é o dia pra sonhar/ Sonhar com uma madrugada vermelha/ com os olhos brancos/ corpos verdes/ mãos azuis/ e sentimentos amarelos

Não... não levante sua cabeça/ pra tentar ver o que não se passa lá fora/ Presta atenção no que lhe acontece aí dentro/ É, aí mesmo: nos seus sonhos/ Hoje é o dia feito pra nascer

Recolha suas roupas/ seus filhos/ amigos/ vizinhos/ desconhecidos/ seus chinelos/ Deite-se e deixe todos ao seu redor/ Corta fora todas as vozes/ todos os passos/ todos os panos/ E lhes conte que hoje, sim, é o dia da Grande Criação – da criação de um novo Sonho/ E lhes mostre que ainda se pode sonhar, ainda/ Mas não lhes diga absurdos de monstros, seres e mundos extraterrenos/ Diga-lhes que o fantástico, hoje, é construir – em sonho – um mundo novo


E só vá dormir o seu sono/ quando todos estiverem dormindo profundamente/ e sonhando com leveza/ o novo dia... O novo dia que será anunciado – por todos e a todos – sobre o despertar do novo sonho

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Mais Uma Vez

"(..)Eu quero aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo em si – assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas, amor fati: que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acusadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação." Nietzsche, Gaia Ciência, §276



Tanto tempo levei
para me livrar dessa tristeza
E de tudo que sei
hoje sei, não vale muito
O muito que ouvi
quem dizia nunca se mostrou
De tanto caçar
de tudo já sonhei
E o tempo ainda passa
Os meus olhos não me veem
Aquele amor não dá graça
E as minhas lágrimas
são lágrimas de ressaca
Pelos mares da vida
a navegar, naufraguei
Meu corpo é uma vela
E o vento
quantas vezes não soprei?
Eu nunca me vi numa ilha
pelejando por alguém
Mas a vida ainda leva
E eu sei tão bem
que o tempo que me resta
eu mesmo o estimei
Pensei estar vivo
Na verdade, já nem sei
A loucura me parece tão bonita
que desejo me encontrar com ela
em algumas dessas ruas
por onde nunca passei
Mas meus olhos não enxergam
o que tantos olhos veem
A dor que me percebe
eu mesmo a cultivei
E, em seu fluxo, o mundo ainda me leva,

sem cessar, mais uma vez...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

SUICÍDIO

A ideia do suicídio é um forte consolo. Ajuda a suportar muitas noites más.”Para além do bem e do mal, Nietzsche

...qual é, por que tá hesitando tanto, já não basta de tanta indecisão? Oh, calma, respira, respira. Devagar, se concentra! Meu coração palpita forte demais, ou serão ruídos lá fora? Não posso mais continuar com essa vida, mas também não gostaria de morrer. Vou continuar aqui, quieto, esperando me convencer do que eu sempre tentei me fazer acreditar. Queria parar de chorar, de tremer, de sentir o meu corpo todo como se tivesse sendo consumido por frias chamas, minhas lágrimas ardem. Vejo tudo distorcido, ardendo. Alguém está à minha espera, mas já não quero comparecer a este encontro. Quantas e quantas vezes eu faltei a encontros, a reuniões, a compromissos? Quantos não ficaram a me esperar, ansiosos, aguardando inutilmente a minha chegada? Àqueles, eu pude faltar sem mais explicações ou pretextos. A essa, que agora sinto que me espera pacientemente, não sei se poderei fugir. Eu a chamei, a invoquei por muito tempo, ou marquei esse encontro inevitável, esse encontro precipitado. Sei que poderia adiá-lo – haverá tempo para isso? Passos, como se tivessem se aproximando, uma multidão a me espreitar. Todos me aguardam! Como demoro, vêm a mim. Não, eu não quero! Não mais! Não agora! Sentir meu coração disparado me faz desesperar, ele não se acalma, aperto ele com minhas mãos trêmulas, elas tão suadas, quentes. Meu corpo, frio... o peito arde... a cabeça a formigar e a minha boca tá seca... Como é horrível chegar a uma decisão a que já não se tem certeza! Não deveria ter permitido me desviar pelos pensamentos. A consciência me faz reconsiderar, ponderar. Até mesmo vacilar. Dar espaço aos impulsos, é o que eu deveria ter feito. Seria rápido, profundo e constante. E depois, em meio a tanta agonia, era só esperar o sangue me cobrir os olhos e me penetrar todos os sentidos... e morrer sem compreender bem que morria. Como num escurecer. O sangue espalhado ao redor do meu corpo – o sublime manto -, prova da minha coragem desesperada. O meu sangue me protegeria das ações das pessoas. Ele as afastaria de mim. Elas não gostam do sangue, muito menos do sangue dum suicida, de alguém que se renegou às circunstâncias da vida... Acham o sangue impuro, maldito... substância plena e simbólica dos ardores da existência e da morte. O sangue dum suicida não é rubro, nem vermelho. É sangue! É desprezível como o ser que o derramou, que o fez jorrar gratuitamente. O sangue dum suicida é sagrado, é profano: sagrado, porque faz parte da celebração dum ritual divino; profano, porque esse ritual divino também é pagão, devido ao paganismo de quem o celebra. Mas então é isso: o sangue sacroprofano é o que irá me purificar, me libertar, me integrar de volta ao plano de que fomos todos perdidos. Mas eu ainda terei ânimo para derramá-lo, terei coragem para verter dolorosamente esse meu sangue? Já nem me lembro por que quero me matar. Muitas coisas passam pela minha mente ao mesmo tempo, porém, são só lembranças e pensamentos e ideias que não se deixam agarrar, não se fixam no meu consciente, não estou certa da natureza deles. Agora me lembro que ainda ontem eu relembrava que fui aprendendo, forçosamente, me submetendo e me coagindo a não temer a solidão, a loucura e a lucidez extremas, a frieza natural dos objetos e das paredes dos edifícios. Eu me forcei a aprender a ser mais tolerante com os equívocos e com os preconceitos, com as atitudes mesquinhas das pessoas, que por vezes nos afagam, nos sufocam e até mesmo nos matam... Há um tempo elas já não me interessam. Eu me coagir a aprender que muitas coisas são possíveis e que poucas delas são verdadeiras, legitimas. Fui aprendendo tudo que se oferecia a mim, e apreendendo tudo que eu me obrigava recusar, e então eu me perguntei: o que é que me ficou, o que é que me sobrou, o que eu tinha conseguido acumular, oh, o que é que eu tinha para me segurar, para me apoiar, para me confirmar, para me agarrar e não cair trágica e pateticamente? Ah, se todos se negam a me ajudar, se todos me negam um suporte, minha nossa, como isso é tão forte e irreal! Matar-se é tão difícil quanto viver. E agora percebo que em nada essas duas questões se resumem ao fato de se ter ou não coragem para realizá-las e encarná-las de sentidos. O problema que as envolve, e com o qual eu me deparo, é profundamente complicado! E a única coisa que me parece sobrar, é chegar a hipóteses vagas e imprecisas sobre ele... Me lembro de certas palavras

SUICÍDIO (continuação)

 “Não importa o quanto tentemos, o quanto nos esforcemos e nos empenhemos, a ele, a este problema abismal, a este abismo sobre o qual nos lançamos ou que então ficamos a contemplar, só conseguiremos chegar a uma pequena, falsa e ardil porção de um imenso e pérfido emaranhado de camadas e depressões.”
“Matar-se, ou continuar a viver, pode-se realizar sob tantas circunstâncias, sob tantos projetos e objetivos, que talvez seja por isso a dificuldade tremenda que sentimos e vivenciamos nas situações em que nos parece que nós mesmos nos exigimos um rumo a ser apontado, um caminho a ser seguido, uma decisão a ser tomada, para se constituir na construção de uma vida ou para se consumar nas ruínas da morte.”
“Para convencer-se do suicídio, é preciso pensá-lo estando deitado, porque, quando deitados sobre nós mesmos e sobre nossas mãos, não sentimos mais o peso da existência, das pessoas, só nos sentimos a nós mesmos e nos sentimos completamente mutilados. E então poderemos olhar tudo ao redor para trazermos à tona tudo que permanece ausente, para nos encantarmos com a irrefutável beleza de todas as criaturas, tanto as da natureza como as humanas, e entendermos que elas, e nós mesmos, nunca fomos outra coisa senão isso: beleza! – uma beleza que não encerra em si mesma um significado e uma importância, por isso é que não se deve se crucificar tanto com a angustiante indecisão de se matar ou não. Além disso, viver em angustia contínua já é estar se matando. Existir nunca nos foi uma escolha. Não querer viver essa existência, sim!” 
    A maioria dos suicidas foram pessoas que acharam ter chegado ao extremo e se mataram. Sinto uma estima mórbida por elas e por seus atos derradeiros. Porém, me desanimo e novamente me desespero por não me decidir como elas. Eu costumava acreditar que somente por um impulso negativo se chegaria à conclusão de que talvez só fosse possível transformar intensamente a vida, e a si próprio, exterminando, liquidando essa existência assentada na imanência de todo uma realidade, ao mesmo tempo, exterior e objetiva e interior e subjetiva. Esses dilemas, essas dualidades me exasperam! Quero olhar pra mim mas tenho medo dos meus movimentos. Tenho medo de pensar em fazer uma coisa e quando menos esperar me deparar fazendo outra: a mão que vai sentir o peito e quando se percebe ela o apunhalou intencionalmente, rasgou suas vísceras e espalhou sangue por todo o corpo... Eu costumava acreditar que os suicidas eram pessoas que, ao sustentarem a hipótese da existência dum caos interminável e imutável, sob o qual a realidade do mundo, que é a nossa, estaria inevitavelmente atrelada, e tomados por sucessivas e violentas alucinações, psicoses, neuroses, sentimentos de angustia e desespero, eles, por um momento – o momento anterior ao da resolução final – ficavam serenos, brandos e indiferentes, pois se convenciam de que não há por quê sofrer tanto com o impasse de se morrer ou se manter vivo num mundo de seres e objetos e de muitos outros elementos carentes de sentido.
Parece que lá fora, e mesmo aqui dentro, tudo se aquietou... As mães devem dormir com seus filhos... a mulher, com seu amante... e cada um com sua dor e sua alegria... fatais... A madrugada é plena... tudo ocorre em seu misterioso ritmo costumeiro... Daqui a pouco será dia e eu, exausto, estarei dormindo o silêncio do mundo, completamente só, mais uma vez...

sexta-feira, 18 de julho de 2014

ANSEIO SUICÍDA

Desde a tardia adolescência
quando senti pela primeira vez
            a perda
um pensamento se apoderou de mim
recôndito 
            em minha cabeça

Um pensamento mórbido, obsessivo
por vezes passageiro
por outras, impreciso
Um pensamento tal dum extremo teor
                 corrosivo

Estranhamente libertador

Mário Sá-Carneiro quem o diga
já que sempre se mostrou
atormentado por essa ideia
de total aniquilação do ser

Minha língua até vacila
Chego mesmo a estremecer
como se em palavras se concretizasse
esse anseio maldito
cínico sem humor
de que só mesmo a Morte

de matar-se tem valor

quarta-feira, 9 de julho de 2014

TRILOGIA NARCISO

Parte I

A Contemplação de Si Mesmo

Vislumbro entre as águas claras
e ondeantes desse mar espelhado
um rosto, um rosto tão lindo:
olhos fundos, lúbricos, órbitas lívidas, negras
a tez vermelha como telúrico barro
a testa lustrosa
o maxilar arrendondado, perfeito
uma penugem rara
um buço incipiente
as sobrancelhas curvadas
sobre cada forma do olhar
os cílios – um véu de filamentos
negros e grandes
o nariz afilado
de narinas levemente dilatadas
os lábios pequenos e serenos
contornando a boca maliciosa
E a expressão tão fascinante
alucinada
esboçando seu silêncio...


(Ah, como é doce esse contemplar! Não preciso de mais nada. Só quero passar a eternidade presente contemplando minha face nesse espelho d'água)

Parte II

A Metamorfose

Minha cabeça feneceu sobre a terra
e minhas mãos e meus pés
sulcaram o solo
e se enraizaram nele
Meus cabelos mergulharam em sulcos de barro
e medraram úmidos e viçosos
Todo meu corpo
consumido com ferocidade
pela Natureza onívora
desabrochou na estação primeva
E hoje meu ser exala essências
coloridas, extasiantes -
bálsamos dum perfume enegrecido
E todos me conhecem pelo nome
             de Flor-Narciso

Parte III

Vi meu amável rosto
             em chamas
             em labaredas
sendo forjado pelo fogo infame
             da tristeza

            Soltei um grito...

Acordei sobressaltado
ansioso por ver minha face
em qualquer reflexo
do meu sombrio quarto

Vi num espelho invertido
no teto escabroso e alto
minha imagem possessa estertorando
gargalhadas de “Maldito! Maldito!”

Apalpei com desespero
meu intangível rosto
Quando dei por mim
já estava torto
pela fealdade severa
daquele fogo fátuo...

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A MÃE DA PATROA

Ela morreu nos meus braços. Os últimos suspiros de vida. De repente sossegou completamente. E adormeceu no seu sono profundo como uma criança, um bebê no conforto do embalo materno. Eu - a empregada da casa. Há dez anos já. Já tinha me apegado a ela. Muito mesmo até. Às vezes era difícil ver ela à beira da janela do apartamento, olhando longe, talvez em busca dum passado que fica a brilhar no horizonte como uma estrela que já viveu, que já existiu, mas que agora é só isso – um raio de luz bem distante da gente, do nosso céu. O que a senhora tá olhando, posso saber? Tá de olho em alguém? – eu brincava com ela. Ela então meio que despertava: Hãn? Não, não, minha filha. Falava doce. Tô só olhando. Chega uma época na nossa vida que a gente se sente assim, que só pode olhar... observar as coisas do mundo acontecendo, sem você, independente de você. Mas não é tristeza não, esse sentimento. É mais como quando se está diante de algo bem bonito e você sabe que dificilmente terá este algo só pra você, em suas mãos. É até bonito. É um sentimento de beleza, de contemplação... Aí ela parava, me olhava com um ar doce, calmo. Sempre serena. Saía, sem dizer mais nada, passando a mão pelo meu ombro, como se através daquele gesto tão simples pudesse ou quisesse me transmitir todo o seu conhecimento, a sua experiência, 97 anos de vida vividos. Muito tempo! Mesmo eu tendo apenas 39, já achava que tinha vivido muito. Me lembro que quando eu era bem mais nova, com uns 10 anos, ou com 18, sempre achava que já tinha vivido muito, que já sabia muito, que já não tinha mais nada pra viver, que já bastava. A minha patroa, a Dona Neusa, dizia que a gente na velhice parecia que desaprendia as coisas que tínhamos aprendido. Falava isso sempre que a mãe dela, a Dona Ildinha, cagava na roupa e saía pela casa, espalhando cocô caduco e fedorento. Cocô de gente velha fede muito. É igual à de bebezinho, só que mais nojento. Eu chegava e via D. Neusa possessa, gritando com D. Ildinha. Eu ia, pegava a velha e levava pra limpar, pra dar banho. Ela paciente, normal. Dava banho nela e depois ia limpar toda a merda espelhada pela casa. Um horror!, D. Neusa ficava exclamando, se lamentando. A mãe naquele estado. Acho que ela ficava com vergonha de mim. Num sei. É uma boa mulher. Uma boa patroa. Menos quando o assunto é aumento de salário. Mas tudo bem. Ela resiste um pouco, acho que só pra mostrar firmeza pro marido, pra não demonstrar tanta simpatia com os empregados da casa, comigo. Mas depois ela cede, convencida de que não arranjará outra pessoa de confiança, competente, pra trabalhar pra ela. Quando D. Ildinha morreu nos meus braços, ela, D. Neusa, me deu a corrente que a mãe dela usava. Me disse, pega pra você, Juliana. Você era mais íntima da minha mãe do que eu. Ela gostava muito de você. Te adorava... – eu, com lágrimas nos olhos... – mesmo que nesses seus dez anos de casa ela nunca tenha te chamado pelo seu nome (sorrio) você sabe, ela tinha muita estima por você. Adorava quando você chegava. Acho que ela não se sentia mais tão sozinha. Alguém com paciência pra conversar com ela, pra arrumar a bagunça que ela fazia... Hã, era mesmo! D. Ildinha nunca me chamou pelo meu nome. Todas as vezes que eu chegava e ela tava na sala, ia logo me dizendo, Bom Dia Márcia! Outro dia, Bom Dia Maria Célia! Bom Dia Luzia! A cada dia, um novo nome, mas que sempre se repetiam semana após semana. Perguntei pra minha patroa se ela sabia de onde a mãe dela tirava aqueles nomes. Ela não sabia. Desconfiava que talvez fosse de velhas amigas da mãe ou pura caduquice. Um dia eu disse pra D. Ildinha, a senhora sabe que esse não é o meu nome. Ela respondeu, carinhosa, não importa muito o nome da gente, sabe filha? Pras outras pessoas, a gente sempre é alguém que nós mesmos desconhecemos. A gente tem um nome, mas a verdade é que a gente se desconhece. Ninguém conhece ninguém. A gente mantém contatos mas nunca nos descobriremos. O abismo que há entre mim e você, entre nós e os outros, entre nós mesmos... é nesse abismo, filha, que está o que somos e não sabemos. Apesar de não entender muito o que ela queria dizer, eu sempre escutava, atenta, achando graça nas palavras dela, nas ideias. Era tão bom conversar com ela. Até mesmo quando ela cagava no chão da sala e ficava lá, à beira do próprio cocô, observando, observando. Não tinha quem tirasse ela de lá. Eu chegava de mansinho. Quê que a senhora tá fazendo aí? Ela chiava, XIUUUU! Silêncio. D. Ildinha... Mas será que nem uma pessoa da minha idade pode se examinar nas coisas que faz, nas coisas que come e que depois caga, sangra, expele...? Ei, filha, vem cá. Tá vendo esse monte de bosta? Ele também faz parte de mim, eu também sou ele. E, agora, que ele não tá mais em mim, e é uma parte minha, agora eu posso ver, conhecer algo de mim mesma que eu desconhecia. Entenda filha, nós também somos aquilo que comemos e que corre nas nossas veias, no nosso sangue, no nosso organismo, e também somos aquilo que cagamos, que cuspimos, que mijamos... que sai da gente. Ela levantava e saía andando. Eu continuava lá, confusa, achando pena e graça ao mesmo tempo, diante da merda. Na ocasião que ela morreu, dando seus últimos suspiros nos meus braços, a respiração cessando aos poucos, ela nem se retorceu, nem cagou. Eu fiquei alisando os cabelo dela. Aqueles fiozinhos tão finos, grisalhos, alguns cor de ferrugem. Ela gostava quando eu ficava horas e horas alisando o seu cabelo. Parecíamos mãe e filha, assim como quando ela adormeceu pra sempre no meu colo, nos meus braços, feito um bebê que no colo da mãe parece sentir um cheiro fortíssimo mistura de leveza e paz, realidade e sonho.

domingo, 8 de junho de 2014

xxxPornoesiaxxx

Tristeza Lascívia

entre os morangos
e pêssegos mofados
na gaveta
de calcinhas comestíveis
(indigeríveis)
o vibrador estrangulado
por um silêncio
de suplícios


no buço
apagado
no ranço
sem viço
o peito
amargo
um seio
sem vícios


no sofá de pernas abertas
sorve o chá que borbulha gelo seco
na mesinha de centro
três rastros
de lágrimas
de um véu negro



essa demência
       de estar livre
       de roçar
o corpo todo
é mesmo
      não estar livre
      é engolfar
      no próprio
gozo



sobre o peito nu
ela chama a companheira
das horas mornas e solitárias

respirando amena
e vaporizando as aureolas
dos seios róseos
Ela deita do lado dela

deita Ela sobre ela

ouvindo os ruídos e as ruínas
do coração
adormece
enquanto a outra
insone na vigília
chora baixinho
como se orasse a um deus
que soubesse não entendê-la


uma garrafa de vodca
pêssegos mordidos
e espalhados pelo chão
na mão pendurada
à beira da cama
o amor suspenso
na ilusão de uma vida dura

na noite anterior
se derramava
numa felação molhada
por um jesus-falo
roliço
menino
20 cm
superadorado

no travesseiro ao lado
o amante dorme
impassível
um objeto sem sentimentos
depois que acabam as pilhas




Sylvia Plath

Você sempre goza em mim
Goza de mim
com essa cara de alívio de satisfação
Me enche de porra
Que porra!
Essa sua expressão de quem nasce de quem morre
de quem está curtindo seu paraíso-zen
Que merda!
Não me enche!
Não me toca!
Não vê que o meu prazer é solitário
Meus dedos têm a ternura do meu egoísmo
E se gozam
e gozam
é com meu prazer

—Vamos, não finja que não sabe o que quero dizer




Dentro da Boca

A parte de você que eu tenho na boca
tem o mesmo gosto do seu braço
o mesmo cheiro do seu abraço
Tem o gosto estranho perfeito do seu gozo
se espalhando dentro de mim
me invadindo as veias
passando direto pelo útero
ácido que corrói
destrói
excita

A parte de você que eu tenho na boca
com a qual me comunico com a língua
com os dentes
com minhas palavras salivas
é sua parte mais nobre:
bem menos dramática que seu coração
bem mais sincera que seu amor
bem mais exultante que suas promessas
bem menos sufocante que seus carinhos





AI, ESSA TUA SALIVA
LEITOSA
SALGADA
ESPESSA...
DERRAMA MAIS DELA
EM MINHA BOCA...
ELA É QUE ME DELEITA!



AS TUAS ALVAS
COSTAS NUAS
ESBATEM OS TEUS
LONGOS CABELOS NEGROS

E, ÀS CURVAS FORMAS
DAS COSTAS TUAS,
AS MINHAS MÃOS TREMULAS
ARDENTES FLUTUAM




Sombra de um Suspiro

nesses teus braços
o ócio é tesão puro!
Aspiro da tua boca
todo oxigênio necessário
para queimar os meus pulmões
e acender a vela do Amor
Tua língua me deixa
todo embalsamado
dos teus seios as minhas mãos e os meus lábios
se deixam escravos
as tuas costas são uma queda caudalosa
e alva
do mais libertino Silêncio
uma borboleta ofegante pousa no teu ombro-lótus
para que ela voe
assopro no teu gemido
sinto o teu ardor
se derramando no meu sexo
sinto que você já se encaixa em mim
um suspiro profundo
vejo você linda e enorme
um corpo maravilhoso

fazendo sombra de mim

quinta-feira, 29 de maio de 2014

xxx Poesia Porno xxx

Inútil Fingir

Ora, menina!
Se te amo?
Mas é claro que te amo
E te amo com ternura
Só não finja que não sabe
que também anseio você nua...


Poema Saidinho (2006)

Sou poema que quer se deitar com você
Por isso, agora, me põe no seu colo
e deixe que as palavras saíam do limite da folha
           [e sejam mãos acariciando os seus joelhos

            Isso!

Imagina eu ajoelhado diante de você
com os olhos à altura dos seus seios
desejando tocá-los
com o mesmo fervor com que toca em mim

         ...afago sua cintura
         seu quadril
         e inclino minha cabeça
         no meio de suas pernas latejantes

        Devagar
        bem devagar
        com leveza e suavidade

Sinto o gosto humano
e o calor de suas coxas...


      Isso
            Oh
      Isso
           Oh
     Ah
          Oh

    (o suspiro é um susto de deleite)

Já não sou mais só um poema
    e você não é mais só uma leitora

Suas mãos estão em mim
assim como minhas palavras
    delirantes
    erram por você toda...

    Isso, vai!
Sinta comigo... descubra
o desejo carnal de ser possuído
   lido
   sublimado...




Calma, amor
Devagar
Me deixa sentir
sua cintura
o seu cheiro
Me deixa perceber
os movimentos de suas mãos
dos seus lábios
de suas pernas...
Geme, amor
devagar, baixinho...

    Calma, amor
    Devagar
    que eu vou divagar

    pelo teu corpo





segunda-feira, 12 de maio de 2014

Poemas Nietzscheanos

Sem Linguagem

Ficar diante das coisas
é vê-las e só pensar:
vejo... elas existem...
A vida plena
a existência sem linguagem
Só palavras... As coisas...
O murmúrio
A mudez de tudo
em tudo

Condicional

Sério
Sereno
Mudo
Como sério
Seria tudo
Que sereno
Mudo
Se fizesse
Sem no entanto
Mudo
Consentir com tudo
Que não lhe fosse
Sério
Sereno
Mútuo


Poema Para Ser Esquecido

Poema para ser esquecido
Esquece-o
e jamais esquecerá
que um dia já o tivera lido
só para esquecê-lo em seguida
como se nunca tivera sido

Esquece-o

sem pensá-lo
porque pensar é contrário ao olvido
e contrariar o que quer ser esquecido
é condená-lo ao passado

Esquece-o

totalmente
como se ele estivesse escrito
com as palavras desnudas de silêncio

Esquece-o

em seus ouvidos
porque
ainda que o lera
um dia
ele jamais lembrará
que já o tivera lido

Esquece-o...
porque só a Eternidade
pura do esquecimento
é que o eternizará
no Templo do Olvido


Palavras-formigas

Folha de papal
em branco
é como um monte
de açúcar glacê:
atrai um bando de
palavras-formigas
que aos poucos
se amontoam
e se deixam ler


Peçonha

Põe o meu dedo em sua boca
como quem fosse beijar uma serpente

Vai... Assim... Sem medo
pois se algum veneno inocular em você
(tenha certeza)
não sairá pelo meu dedo


Canção Pra te Ouvir

Levanta
ou senta
Fica à vontade
Se bater a saudade
diz o que posso fazer
pra te ver sorrir

Só não fica assim
de pé
na vigília senfim
da solidão

Diz o que quer
Eu sei que te quero
E não te trago
em sonhos vãos

Esses teus olhos acesos
dois círios iluminados
na amplidão calada
E a tua música sensível só
aos meus sentidos

Fala do tempo
       futuro
       antigo
Conta pra mim
sobre aqueles amigos

Diz que eu te conheço
      desde hoje
      desde nunca
      desde sempre

Diz qualquer coisa
mesmo no silêncio
só pr'eu saber
como cantar pra você
e te ouvir


Ainda Sem V C ^

Olho no espelho/procurando sua face/mas como poderia ver o seu rosto/com os seus olhos?/A luz refletida do espelho/me atravessa/Algo em você/me atravessa
Sua luz seu calor/Há algo em você/que resplandece/em mim
Ou será delírio meu/Eu que estou sob um sol escaldante?/Não sei até onde isso importa...

Só sei e sinto/sem estar com V C ^