sábado, 23 de dezembro de 2023

Poesia - Miúda

Em vão procuras palavras em outras bocas

Versos alheios nada sabem da tua tristeza
Nada têm a ver com a tua solidão

Tua boca torta num esgar de choro
Consola tuas palavras que se convertem em riso
Estás enlouquecendo, encarando-te num quarto sem luz ou espelhos
E o reflexo que vês
És tu mesmo em sombra

A escuridão também sabe te seduzir 
E te envolver como uma bela amante
Tem um cheiro confortante
E mãos tão delicadas e meigas
Que não consegues ver a lama espessa que há por baixo das unhas dela
Essa que só pode te dar um amor sombrio

Em vão recitas versos em voz alta
Para, escuta
Dá voz ao teu silêncio
Ele te clama e chama por ti
Mas segues alucinados citando versos escritos
Por mãos que não as tuas

Não percebes que a poesia nessas horas
É como beber um doce veneno
Do qual não se deseja mais que um gole?
Bebes
Sorves
Versos latinos de tempos imemoriais

Abres uma página e em vez de palavras e rimas
O que vês? Tu bem sabes... 
É o nome dela
Palavra pequena
Em letra miúda

O nome dela a invadir por toda parte
Contaminando versos e poemas
Móveis, tapetes, silêncios e sombras
Tudo... tudo... tudo...

Recitas entre lábios 
Cada sílaba do nome dela
Nome marítimo que te faz querer entrar no Mar
Mar aberto, grandioso e borbulhante
Indiferente a todo sofrimento e drama humanos

Mas é o teu Mar
O mesmo em que muitas manhãs semi-iluminadas
Vias olhos de ressaca te chamarem para dentro de si

O mar aberto e infinito te chama
Ondas e marés altas arrastam teu corpo
Como sereias mortas levadas pela gravidade lunar
Andas descalço sobre areia
Recolhes conchas, retalhos, águas-vivas
Espólios de um náufrago que tem o teu codinome

Como é doce e quente a loucura do autoengano
Bem sabes que onde estás não tem mar
Não tem ondas
Nem náufragos, sereias ou até mesmo águas-vivas 

Temes a noite que te consome
Essa amante voraz que te morde os lábios 
E bebe das tuas lágrimas

Fosses romântico teu delírio ardiria em febre
Lembranças desencontradas de alguém que já não tens contigo

Em vão recitas os sofrimentos de outros poetas
Abraça tua dor
Teu choro
Teus sentimentos
Sinta essa poesia que floresce a partir de ti
A partir de palavras
Pequenas
Saudades
Tão grandes
Imensas
Miúda - é também o teu nome
Ainda que eu queira chamar-te Poesia

Paloma ruiva


_em algumas línguas te chamam Paloma
ave urbana, marginalizada, 
outrora símbolo da paz, da esperança

_mas teu olhar ruivo reluz
Me convida e me repele a um só tempo
Desafio afetivo a me provocar
Paz - aqui não há
a não ser quando te chamam pomba

Paloma...

_Voar no teu céu 
deve ser como viver acima das nuvens e dos medos
Voar nesse teu céu
Morrer como teu segredo

_corpo voraz
Serpente
De repente, serpentinas
a devorar a ave que voa e inocente se aproxima
Doce impulso suicida
Fascinada pelo teu sorriso
teus encantos
Um abismo de cachos nesses teus cabelos

_Paloma
ave que revoa
em meio a noite, iluminada
Feito fogo
Fagulha vermelha
Cabelos revoltos
Ave embrasada

_quem me dera poder pousar em tuas asas
em teus ombros
em teu pescoço
ou no teu colo
E te olhar como quem encara um espelho d'água misterioso
profundo

_ave
Eva
Voa
E me leva
para dentro de ti
Esse meu ser que nada tem a lhe oferecer
a não ser sacrifício e devoção
loucura e desejo

_leve ave que voa e me leva
contigo
pra dentro de ti
onde for