sábado, 13 de agosto de 2016

Dia dos Pais


Véspera de feriado. Ele saiu do trabalho pensando no sentido daquela data.

A princípio, menosprezou a ocasião baseado na necessidade com que as pessoas apareciam no comércio onde ele trabalhava, desesperadas por um presente que pudesse simbolizar os afetos que sentiam pelos seus pais. Para ele, havia algo de superficial e mesquinho naquilo, que lhe causava um gosto amargo na boca. Vaidoso do seu rancor, a cada atendimento, ele olhava com desdém o cliente a sua frente lhe pedindo como uma criança deplorável algo que fosse de acordo com o perfil de um pai, um alguém que ele não conhecia mas que já odiava e sentia pena desde então. Nessas ocasiões, ele não fazia a menor questão de se empenhar em ajudar o seu cliente na escolha do “delicado presente”, e até sugeria produtos discordantes com a descrição feita pelo comprador. Indicava uma coisa qualquer e, para sua surpresa, o cliente lhe agradecia alegremente pela sua “indicação certeira”.  

Aquilo tudo era um absurdo, uma data sem sentido algum, a não ser fazer com que as pessoas consumissem mais e mais, sem pensarem em suas próprias misérias e carências.

Mas, e ele? Afinal, não trabalhava no comércio? Sua sobrevivência, seus rendimentos não dependiam diretamente do anseio de consumo alheio, e do dele próprio? Tentava se justificar, repetindo diariamente, que aquela era só uma ocupação temporária, um período intermediário até descobrir sua legitima vocação; até que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudariam e ele faria o que sempre quis, ainda que isso não estivesse bem claro para ele até ali.

Andando pelas ruas, encurvado, mãos nos bolsos da blusa, a quem ele tentava enganar? Olhava de soslaio para os que passavam ao seu lado, e pensava: eles não sabem de nada. Mas consciente, lá no fundo de seu interior, ele sabia: todo o seu ressentimento pela espécie humana e pelo mundo era só um reflexo do que nutria por si mesmo, formando uma imagem própria de um sujeito covarde, pobre, fraco, sem objetivos e convicções; um desses seres que aguardam a vida toda por aquele momento que virá de repente obrigando-o a mudar de vida de maneira significativa, dando-lhe de bandeja todo pretexto necessário que a falta de coragem nunca lhe permitira. Pensar aquelas coisas lhe causava certo prazer doloroso. Caminhava devagar, procurando a todo custo passar despercebido pelos olhares dos outros, perdido na sua quimera de diluir-se sem jamais ser notado. No seu anseio quimérico de não ser ninguém, ele sabia, e isso era o que mais lhe doía, ele era só mais um alguém.

Odiar-se, menosprezar-se – ó vertigem narcísica de diminuir-se, eram palavras que ecoavam dentro dele.

Ele então erguia a cabeça e observava as pessoas com ódio. Não era justo culpar-se daquele jeito. Não era certo carregar sozinho, em ombros tão frágeis, tanto desgosto e desespero. E aquela data vinha exatamente para lhe lembrar quem era o verdadeiro responsável pela sua existência insignificante. Meu pai - sussurrou baixinho, para garantir que ninguém pudesse ouvir aquelas palavras sem deixar de perceber nelas o peso de uma acusação infantil e tola. Meu pai, repetiu em pensamento, como quem faz uma prece ao mesmo tempo em que duvida da entidade pela qual roga.

Aquele homem, ele nunca o conheceu muito bem. Seu ressentimento pela figura paterna talvez tivesse origem daí. Das lembranças frágeis e escassas de um homem seco, de poucos afetos. Austero, misterioso, sombrio. Das poucas lembranças que tinha, o pai sempre figurava como um personagem de um sonho, do qual, nunca nos é permitido ver com nitidez o rosto, mas que está quase sempre naquelas perseguições e atribulações oníricas das madrugadas. Um fantasma de carne e osso. Uma ausência constante. Um sempre ausente, indo e vindo nas suas atribulações de filho sem quase nunca aparecer de verdade.

Lembrava-se das vezes em que a mãe comentara da origem humilde e nordestina da família, de como o seu avô, pai de seu pai, morrera, deixando a cargo dos filhos a tarefa de trabalhar e sustentar os parentes de casa; lembrava-se dela contando com certo orgulho de quando o pai dele viera para São Paulo sozinho, para tentar conseguir um emprego e moradia, para poder trazer ele, o filho, e ela, a mãe, para uma realidade mais “digna e confortável”. E conseguira, não viviam nas melhores condições, mas levavam uma “vida justa, de aluguéis e carnês pagos com retidão”. Viviam felizes a sua maneira, até que... Apesar das seguidas traições, das acusações, das brigas que antecederam o divórcio, o tom de acusação nas palavras da mãe provinha dele, o filho, e não dela, a mãe traída, a mulher vingada. Ele, sim, se sentia traído.

Talvez um dia se reconciliasse com seu velho. Na verdade, nem sabia ao certo a idade que o pai deveria ter, nem por que o odiava tanto.

Talvez um dia perdoasse seu pai, mas não daquele perdão que as religiões pregam. Sim, de perdão mais humano, mais visível, um perdão de quem sabe e sente quão precária e irrisória é uma vida humana. Um perdão árduo, cheios de acusações. Mas ainda assim, um perdão. Uma reconciliação possível, depois de tanto tempo de ausências e esperas.

Ele então ligaria para o pai, no dia mesmo do Dia dos Pais, e, quando o outro atendesse perguntando quem era, ele, o filho, simplesmente lhe diria:

- Tudo bem, pai, eu te perdoo... a sua ausência... Estou pronto. Já posso te encontrar de novo.