Ela
morreu nos meus braços. Os últimos suspiros de vida. De repente
sossegou completamente. E adormeceu no seu sono profundo como uma
criança, um bebê no conforto do embalo materno. Eu - a empregada da
casa. Há dez anos já. Já tinha me apegado a ela. Muito mesmo até.
Às vezes era difícil ver ela à beira da janela do apartamento,
olhando longe, talvez em busca dum passado que fica a brilhar no
horizonte como uma estrela que já viveu, que já existiu, mas que
agora é só isso – um raio de luz bem distante da gente, do nosso
céu. O que a senhora tá olhando, posso saber? Tá de olho em
alguém? – eu brincava com ela. Ela então meio que despertava:
Hãn? Não, não, minha filha. Falava doce. Tô só olhando. Chega
uma época na nossa vida que a gente se sente assim, que só pode
olhar... observar as coisas do mundo acontecendo, sem você,
independente de você. Mas não é tristeza não, esse sentimento. É
mais como quando se está diante de algo bem bonito e você sabe que
dificilmente terá este algo só pra você, em suas mãos. É até
bonito. É um sentimento de beleza, de contemplação... Aí ela
parava, me olhava com um ar doce, calmo. Sempre serena. Saía, sem
dizer mais nada, passando a mão pelo meu ombro, como se através
daquele gesto tão simples pudesse ou quisesse me transmitir todo o
seu conhecimento, a sua experiência, 97 anos de vida vividos. Muito
tempo! Mesmo eu tendo apenas 39, já achava que tinha vivido muito.
Me lembro que quando eu era bem mais nova, com uns 10 anos, ou com
18, sempre achava que já tinha vivido muito, que já sabia muito,
que já não tinha mais nada pra viver, que já bastava. A minha
patroa, a Dona Neusa, dizia que a gente na velhice parecia que
desaprendia as coisas que tínhamos aprendido. Falava isso sempre que
a mãe dela, a Dona Ildinha, cagava na roupa e saía pela casa,
espalhando cocô caduco e fedorento. Cocô de gente velha fede muito.
É igual à de bebezinho, só que mais nojento. Eu chegava e via D.
Neusa possessa, gritando com D. Ildinha. Eu ia, pegava a velha e
levava pra limpar, pra dar banho. Ela paciente, normal. Dava banho
nela e depois ia limpar toda a merda espelhada pela casa. Um horror!,
D. Neusa ficava exclamando, se lamentando. A mãe naquele estado.
Acho que ela ficava com vergonha de mim. Num sei. É uma boa mulher.
Uma boa patroa. Menos quando o assunto é aumento de salário. Mas
tudo bem. Ela resiste um pouco, acho que só pra mostrar firmeza pro
marido, pra não demonstrar tanta simpatia com os empregados da casa,
comigo. Mas depois ela cede, convencida de que não arranjará outra
pessoa de confiança, competente, pra trabalhar pra ela. Quando D.
Ildinha morreu nos meus braços, ela, D. Neusa, me deu a corrente que
a mãe dela usava. Me disse, pega pra você, Juliana. Você era mais
íntima da minha mãe do que eu. Ela gostava muito de você. Te
adorava... – eu, com lágrimas nos olhos... – mesmo que nesses
seus dez anos de casa ela nunca tenha te chamado pelo seu nome
(sorrio) você sabe, ela tinha muita estima por você. Adorava quando
você chegava. Acho que ela não se sentia mais tão sozinha. Alguém
com paciência pra conversar com ela, pra arrumar a bagunça que ela
fazia... Hã, era mesmo! D. Ildinha nunca me chamou pelo meu nome.
Todas as vezes que eu chegava e ela tava na sala, ia logo me dizendo,
Bom Dia Márcia! Outro dia, Bom Dia Maria Célia! Bom Dia Luzia! A
cada dia, um novo nome, mas que sempre se repetiam semana após
semana. Perguntei pra minha patroa se ela sabia de onde a mãe dela
tirava aqueles nomes. Ela não sabia. Desconfiava que talvez fosse de
velhas amigas da mãe ou pura caduquice. Um dia eu disse pra D.
Ildinha, a senhora sabe que esse não é o meu nome. Ela respondeu,
carinhosa, não importa muito o
nome da gente, sabe filha? Pras outras pessoas, a gente sempre é
alguém que nós mesmos desconhecemos. A gente tem um nome, mas a
verdade é que a gente se desconhece. Ninguém conhece ninguém. A
gente mantém contatos mas nunca nos descobriremos. O abismo que há
entre mim e você, entre nós e os outros, entre nós mesmos... é
nesse abismo, filha, que está o que somos e não sabemos. Apesar de
não entender muito o que ela queria dizer, eu sempre escutava,
atenta, achando graça nas palavras dela, nas ideias. Era tão bom
conversar com ela. Até mesmo quando ela cagava no chão da sala e
ficava lá, à beira do próprio cocô, observando, observando. Não
tinha quem tirasse ela de lá. Eu chegava de mansinho. Quê que a
senhora tá fazendo aí? Ela chiava, XIUUUU! Silêncio. D. Ildinha...
Mas será que nem uma pessoa da minha idade pode se examinar nas
coisas que faz, nas coisas que come e que depois caga, sangra,
expele...? Ei, filha, vem cá. Tá vendo esse monte de bosta? Ele
também faz parte de mim, eu também sou ele. E, agora, que ele não
tá mais em mim, e é uma parte minha, agora eu posso ver, conhecer
algo de mim mesma que eu desconhecia. Entenda filha, nós também
somos aquilo que comemos e que corre nas nossas veias, no nosso
sangue, no nosso organismo, e também somos aquilo que cagamos, que
cuspimos, que mijamos... que sai da gente. Ela levantava e saía
andando. Eu continuava lá, confusa, achando pena e graça ao mesmo
tempo, diante da merda. Na ocasião que ela morreu, dando seus
últimos suspiros nos meus braços, a respiração cessando aos
poucos, ela nem se retorceu, nem cagou. Eu fiquei alisando os cabelo
dela. Aqueles fiozinhos tão finos, grisalhos, alguns cor de
ferrugem. Ela gostava quando eu ficava horas e horas alisando o seu
cabelo. Parecíamos mãe e filha, assim como quando ela adormeceu pra
sempre no meu colo, nos meus braços, feito um bebê que no colo da
mãe parece sentir um cheiro fortíssimo mistura de leveza e paz,
realidade e sonho.
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