terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Um Escritor - Parte I

afastar móveis, ajeitar-se na cadeira, balançar as pernas e tamborilar com os dedos – ele sabe que todos os esses gestos e movimentos são uma tentativa desesperada de atribuir um rito a algo que já não tem nada de ritual: sentar-se e escrever, ou melhor dizendo, sentar-se para escrever.

a luz da lâmpada logo acima de sua cabeça reflete direto na tela do computador. isso o irrita. tira sua concentração. o faz achar que sua falta de criatividade provem dessa mera luz opaca, amarela a se dissipar pelo espaço pequeno de um quarto, não de um escritor, mas de um alguém que pretende ser um. ainda que, para esse alguém, ser um escritor seja só uma ideia vaga e obscura na qual pretende se agarrar até que tenha desperdiçado todos os anos de sua vida em coisas e pessoas desmerecedoras de toda sua dedicação. isso é o que ele acha, o que ele pensa. não necessariamente a irrefutável verdade única dos fatos.

nem bem escreveu umas poucas palavras já se vê agoniado imaginando de onde tirar tantas outras palavras para preencher páginas e páginas em branco. esse branco intransponível. frágil, perturbador de uma folha (tela) que parece esperar com indiferença que seja lançada sobre ela tudo aquilo que a humanidade de alguma maneira perseverou para conseguir exprimir e que, agora, encontra-se em perigo de extinção pela falta de aptidão de um escritor incipiente.

imagem deplorável, digna de pena, a de um escritor lutando, quixotescamente, contra um paredão intacto, límpido. arrematando contra ele palavras, frases, parágrafos como se fosse tão eficientes e belicosos quanto espadas de lâmina afiada.


o que pode um escritor. nada, absolutamente nada. além de escrever e se resignar à volúpia das palavras. entregar-se a frases de efeito com a mesma ingenuidade louca de perpetuamento da espécie com que alguns animais se lançam às garras de um predador acreditando estar se lançando para o abismo da gratidão, da fama por parte de seus pares. um escritor não sabe mais do que seus escritos podem dizer. e, se ele não consegue abarcar em suas obras toda a complexidade de seu próprio espírito, de sua própria alma, ele deve perecer e ser execrado por aqueles que, ainda que não possam fazer o mesmo, tem o dever de julgá-lo impiedosamente por ter se atrevido à empresa tão árdua.

não se deve deixar seduzir pelos elogios vazios, pelas teses acadêmicas, pelos artigos laudatórios; pelos risinhos toscos em reuniões com leitores e editores; não se deve se rebaixar pela influência mercadológica de livreiros; não se deve frequentar livrarias esperando ser reconhecido, nem muitos menos assediado; não deixe que esse mundo de vãs expectativas transformem as suas em estatísticas de vendas e projeções de mercado; faça somente o que não for possível deixar de fazer, mas faça com a certeza alegre de estar fazendo por convicção e vontade e não por imposição ou medo.

arrependa-se do que escrever quando soar dogmático, categórico. abstenha-se dos efeitos de conselhos pretensamente sábios. os paradoxos, as contradições, as incongruências – esses sim, são princípios pelos quais você deve encaminhar sua escrita. se te impedem forças estranhas, forças externas a você, lute, resista, mas saiba que, em pouco, até suas palavras serão restos de uma civilização há muito perdida.

a humanidade de um escritor está onde ele menos espera. não está no cinismo cético de ditos satíricos (mas também aí pode estar); não está no deleite de trechos poéticos, sintaticamente perfeitos (mas também aí pode estar); não está nos silêncios e omissões. conscientes ou não (mas também aí pode estar);  não está sequer naquilo que ele acredita ser o principal motivo de sua vida.

há escritores na humanidade (e já houve muitos, e muitos ainda estarão por vir) mas eles não são humanos. mas não se pense que eles possam ser, então, de natureza extraterrena. também não o são. os escritores são para a humanidade o mesmo que as palavras são para os escritores. expressam tudo o que se possa compreender da experiência humana e da existência, mas no fundo, são absolutamente dispensáveis.

eles costumam se supervalorizar em detrimento da consciência mediana da maioria das pessoas. são covardes, pretensos. seres escorregadios, obtusos. omitem-se em declarações ditas e escritas por seus personagens. – essas aberrações externalizadas de seu mundo interior, não necessariamente íntimo. são falsos, mesquinhos. divertem-se com jogos de palavras e sentenças ambíguas. se odeiam, e invejam-se com orgulho. vivem dos esforços alheios. suas obras, seus livros são embustes para atrair leitores desesperados por lerem algo que eles acreditam ser um reflexo fiel (e melhor acabado) de suas próprias experiências. como se isso fosse possível. como se as palavras pudessem, de alguma forma extraordinária, conjugar uma ou mais experiências de vidas totalmente díspares em poucas linhas encadernadas em letras legíveis e diagramação agradável.

desconfie de um escritor que se mostre como um ser à parte ao mundo ao seu redor. ele fará de tudo para convencê-lo de que não há em seus escritos o menor resquício passível de acusação de subjetivação da realidade através de seu mundo psíquico. mas também desconfie de um escritor que tente provar exatamente o contrário. nenhum escritor é digno de confiança, por mais que nos entretemos com suas obras, com seus enredos mirabolantes, com seus finais inesperados.

Continua...

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