quinta-feira, 18 de abril de 2013

Cara Estranho

Entrou no salão aos tropeços e empurrões.
Estava molhado. Encharcado de chuva. Não de água do mar como alguns pensavam ao sentir o seu cheiro de sal.
Escorregava desastradamente devido ao caráter escorregadio de sua calda.
O peito nu arfava. E por todo o corpo descoberto havia aberturas profundas mas pequenas que se dilatavam e murchavam sem parar. Quando alguém lhe segurava os braços ou lhe deitava a mão pesada, para afastá-lo com um empurrão nada festivo, bloqueavam-lhe a passagem do ar. Respirava com dificuldade devido à obstrução das guelras.
Os olhos esbugalhados registravam as imagens que iam aparecendo pela frente. Máscaras, serpentinas, confetes, luzes, músicas, fantasias, danças. Festa.
Estava numa festa à fantasia de tema marítimo.
Empurrado pela agitação dos corpos convulsos, foi passando por entre aquele mar de seres e criaturas diversas. Mexilhões, polvos, tubarões, focas, golfinhos, baleias, ostras, plânctons. Estrelas-do-mar. Capitães. Navios. Boias. Botes salva-vidas. Peixes e plantas estranhos. Entre outros seres impossíveis de se descrever sem abrir mão de uma linguagem científica rigorosa.
Encarava-os com estúpida apreensão e curiosidade, deixando-se levar pela euforia dos que festejavam.
Alguns olhavam com receio a sua cara espantada. Ou crispavam o nariz num movimento involuntário de repulsa pelo cheiro que sentiam exalar dele.
Outros, porém, embriagados e entusiasmados com os festivos e a animação reinante, puxavam-no para uma dança sem jeito e sem graça. Sem graça artística, subtenda-se. Ao que ele mantinha uma expressão que não permitia ao seu par adivinhar se era dúvida ou embaraço.
Na verdade, não podia se movimentar com desenvoltura tendo aqueles pés atrofiados e cheios de escamas. Uma calda.
As hostilidades foram diminuindo, e ele, aos poucos, cada vez mais, ia sendo integrado à multidão festeira. Já conseguia controlar a respiração e arriscava, muito tímido, um arrastar de calda na tentativa de copiar os passos dos que dançavam à sua volta.
Rodopiou como um pião endiabrado, ousando um passo mais audacioso, e acabou dando uma rasteira formidável e certeira num marinheiro parrudo que fumava um cachimbo. Este se levantou rapidamente, querendo amenizar o efeito da queda com a suspensão ágil e imediata. Abriu os braços, afastando as pessoas ao seu redor. Até que ficaram só os dois rodeados por uma plateia exótica no meio do salão transformado pelos olhares expectantes em uma arena de briga carnavalesca.
O marinheiro almejou-o com fúria. Cuspiu um pedaço quebrado do seu cachimbo. Ou então um dente estragado. Avançou decidido em golpeá-lo. Se possível, fatalmente. Os espectadores se agitavam no ritmo da música de fundo aguardando o embate. O outro se contraiu num gesto de defesa, acertando outra rabada no seu oponente.
Protegendo os olhos com as mãos trêmulas, ouviu a saraivada de palmas que soaram pelo salão em conhecimento pela sua admirável coragem. Levantou a cabeça, incrédulo do reconhecimento que recebia. Uma sereia toda cintilante e perfumada se aproximou dele e o beijou demoradamente como a um herói. Foi um estrondo de alvoroço.
O salão fervilhava.
Esquivou-se do assédio da sereia e de outros admiradores circunstanciais, sentindo que o pulso falhava.
Precisava de ar, de líquido. Derramaram-lhe cerveja e caipirinhas no corpo escamado. As guelras se contraíram com a acidez do álcool. Tinha que correr. Tinha que se salvar. Não podia ter perdido tempo com aqueles festejos desmedidos.
Seguiu por um corredor estreito, iluminado por uma luz a ponto de se apagar, onde um polvo musculoso estava grudado numa ostra miudinha. Um de seus muitos tentáculos tentava alcançar a pérola preciosa.
A música e as vozes foram diminuindo conforme ele avançava trôpego pelo corredor, esbarrando nos casaizinhos mais insólitos que só mesmo as profundezas marítimas poderiam proporcionar. Ou uma festa à fantasia com tema marinho.
Entrou no banheiro. Deparou-se com um plâncton e um mexilhão aspirando areia branca. Estes notaram seus olhos esbugalhados e a boca crispada em bico. Indicaram-lhe o mictório coletivo. Precipitou-se para o local indicado. Parou, desapontado. Só havia gelo e bitucas de cigarro. Procurou ao redor onde pudesse se banhar, se molhar. Mergulhar.
Viu alguma coisa pela fresta de uma portinhola que balançava vagarosamente, rangendo, enferrujada.
Aproximou-se com pressa. Escancarando a porta. A passagem. O portal. A privada bege fosco cintilou suas águas calmas e amarelas. Aspirou fortemente. Urina e fumaça. Fechou os olhos e se jogou, fazendo respingar recendente cheiro salgado.
A certa altura da madrugada, um pirata foi mijar. Abriu a porta enferrujada do banheiro. Levantou a tampa da privada. Sempre soluçante. E viu o corpo boiando de lado. Peixe morto. Afogado. Ressentiu-se, contrariado: não era certo acabar a festa daquele jeito.



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