Cada espécime humanoide deve conter, de forma clara, especificado na nuca as informações: CUIDADO - PRODUTO FRÁGIL E PERECÍVEL
Ele acorda. É ainda aquela hora
em que o dia nem é dia ainda, nem madrugada, muito menos noite. É
aquela hora em que tudo é indefinição. O céu adormecido. O
horizonte, uma grande extensão de sonhos e ferrugem. Paisagens
distantes.
O sorriso murcho na boca de
poucos dentes. O mundo sem face. A sua expressão de quem prevê um
dia, mais um dia, duro, difícil. Sol. Caminhada. Papelão. Muito
papelão.
O céu começando a se definir.
As nuvens arrastando o dia, a luz. O vento arrastando as nuvens, os
papéis, as caixas de papelão. Ele, o homem, puxando seu carrinho.
Manhã carregada de azul.
Carrinho carregado pelo homem. Os pássaros, os aviões, os loucos
atravessam o céu. Percorrem vastidões. Ele, becos, ruas, avenidas,
travessas e vielas. Seus passos pesados perfuram o concreto e deixam
rastros indeléveis pelo chão. Sua caminhada é árdua. E os
pensamentos? – quem sabe.
Aves levando alimento para seus
filhotes. Passageiros, presentes, lembranças. Os loucos alados,
cartas e dores. Um lanche num boteco qualquer. Dois lanches, um suco.
O mais barato.
O fim de tarde. O fim da jornada?
Que nada! O jeito agora é levar tudo que conseguiu para vender.
Olha para o alto. Tudo embaçado.
Estranho. Nem percebe que não são seus olhos escorrendo suor frio e
salgado. É o céumar! Com suas águas doces, revoltas. Um dilúvio.
Tudo escuro. Os trovões. A queda. Os relâmpagos. O baque.
Só um pé-d’água. Pé
descoberto sendo lavado pela água da chuva.
No asfalto cinzento a água
translúcida, o sangue correndo pro bueiro. E pensar que logo hoje,
exatamente hoje — como adivinharia? – não fizera como o sujeito
daquela música: não beijara sua mulher nem fizera amor com ela; não
beijara seus filhos como se cada um fosse o único; nem sentara para
descansar como se fosse sábado; não se despedira dos amigos,
vizinhos, conhecidos, ninguém. Apenas acordou. Levantou. E saiu. Com
a mesma determinação e certeza que todos nós temos todos os dias –
a de que voltaremos para casa.
Mas o mundo é um caminho sem
volta. Uma construção grandiosa em ruínas circulares.
E ele, agora, tem o corpo sendo
coberto por um papelão que ele mesmo tinha apanhado. Talvez fosse um
papelão de alguma coisa grande, engenhosa, frágil. Uma geladeira,
quem sabe.
O corpo estendido no chão. O
carrinho atrapalhando o tráfego. A chuva impiedosa desabando sobre o
papelão que estrala em cima do homem. A palavra em vermelho-sangue.
FRÁGIL.
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