quarta-feira, 3 de abril de 2013

FRÁGIL

Cada espécime humanoide deve conter, de forma clara, especificado na nuca as informações: CUIDADO - PRODUTO FRÁGIL E PERECÍVEL

Ele acorda. É ainda aquela hora em que o dia nem é dia ainda, nem madrugada, muito menos noite. É aquela hora em que tudo é indefinição. O céu adormecido. O horizonte, uma grande extensão de sonhos e ferrugem. Paisagens distantes.
O sorriso murcho na boca de poucos dentes. O mundo sem face. A sua expressão de quem prevê um dia, mais um dia, duro, difícil. Sol. Caminhada. Papelão. Muito papelão.
O céu começando a se definir. As nuvens arrastando o dia, a luz. O vento arrastando as nuvens, os papéis, as caixas de papelão. Ele, o homem, puxando seu carrinho.
Manhã carregada de azul. Carrinho carregado pelo homem. Os pássaros, os aviões, os loucos atravessam o céu. Percorrem vastidões. Ele, becos, ruas, avenidas, travessas e vielas. Seus passos pesados perfuram o concreto e deixam rastros indeléveis pelo chão. Sua caminhada é árdua. E os pensamentos? – quem sabe.
Aves levando alimento para seus filhotes. Passageiros, presentes, lembranças. Os loucos alados, cartas e dores. Um lanche num boteco qualquer. Dois lanches, um suco. O mais barato.
O fim de tarde. O fim da jornada? Que nada! O jeito agora é levar tudo que conseguiu para vender.
Olha para o alto. Tudo embaçado. Estranho. Nem percebe que não são seus olhos escorrendo suor frio e salgado. É o céumar! Com suas águas doces, revoltas. Um dilúvio. Tudo escuro. Os trovões. A queda. Os relâmpagos. O baque.
Só um pé-d’água. Pé descoberto sendo lavado pela água da chuva.
No asfalto cinzento a água translúcida, o sangue correndo pro bueiro. E pensar que logo hoje, exatamente hoje — como adivinharia? – não fizera como o sujeito daquela música: não beijara sua mulher nem fizera amor com ela; não beijara seus filhos como se cada um fosse o único; nem sentara para descansar como se fosse sábado; não se despedira dos amigos, vizinhos, conhecidos, ninguém. Apenas acordou. Levantou. E saiu. Com a mesma determinação e certeza que todos nós temos todos os dias – a de que voltaremos para casa.
Mas o mundo é um caminho sem volta. Uma construção grandiosa em ruínas circulares.
E ele, agora, tem o corpo sendo coberto por um papelão que ele mesmo tinha apanhado. Talvez fosse um papelão de alguma coisa grande, engenhosa, frágil. Uma geladeira, quem sabe.
O corpo estendido no chão. O carrinho atrapalhando o tráfego. A chuva impiedosa desabando sobre o papelão que estrala em cima do homem. A palavra em vermelho-sangue. FRÁGIL.



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