quinta-feira, 28 de novembro de 2013

NASCER DO DIA À LUZ DE VELA

Você hoje tá mais calada. Nunca foi assim. Sempre depois que transávamos você começava a falar e a falar e a rir por horas inteiras. Se lembra, às vezes eu até dormia e quando acordava lá estava você, me olhando e falando comigo como se eu estivesse acordado ou então de olhos fechados te escutando? Aí de repente você parava, me olhava sorrindo e dizia simplesmente: “por que você num fala nada... num fala nunca? Tem medo que eu use suas palavras contra você? Não se preocupe, jamais faria isso. É que gosto das palavras, dos sons delas, do movimento dos nossos lábios e de toda articulação do nosso corpo que elas provocam e exigem quando falamos. Uma vez uma mulher com quem dormi – ela era professora de Literatura – me disse que toda essa minha conversa sobre as palavras era coisa de poeta. Poetisa. Poesia. Num sei, sabe? Gosto das palavras pelas palavras.” E você finalmente silenciava. Com aqueles seus olhos miúdos em cima de mim. Esperando alguma palavra minha. Alguma frase, como agora estou fazendo contigo. Eu nunca falava. Hoje, você não diz. Mas sabe por quê eu num dizia nada? Porque sempre achei desnecessário, meio inútil... Falar... Usar as palavras era sempre isso pra mim: dizer uma coisa que não era exatamente o que você queria dizer e que, ainda por cima, a outra pessoa entendia uma coisa que nem era o que você realmente queira falar nem o que as palavras usadas deram a entender. Num sei se fui claro. Mas a comunicação é confusa, é precária. Só o silêncio cria uma relação entre nós que não é nem cumplicidade nem indiferença. É como nós dois agora, eu falando e você aí calada, mas não porque não entenda o que eu digo ou não se interessasse. Mas simplesmente porque estamos num mesmo lugar vivendo experiências completamente diferentes. Eu, vivo, do seu lado, divagando. Você quieta e muda, no seu canto. Morta... Morta. Minha morta. Tua morte. Nossa morte... A morte é um mistério, hein, me diz, é um mistério? Pelo seu silêncio tão calmo, me parece mais que a morte é como a vida, exatamente igual só que pelo avesso: nem precisa ser dita. Basta estar aqui pra viver. A gente existe – a vida em nós. A morte (in)existe na vida em nós. Você, morta, existe na minha vida. Eu, vivo, (in)existo na sua morte. Uma existência estimulando a outra. Exterminando a outra. O meu prazer o seu silêncio. O seu silêncio o meu prazer. Nós dois aqui, eu vivo você morta – vida e morte lado a lado, uma revestindo a outra, depois do sexo, depois do amor. Amor, morte... O seu corpo frio, roxo. As nossas roupas jogadas no chão. Num sei por quê falo tudo isso. Eu sei, eu sei. Num precisa me olhar assim, de olhos estáticos. Sei que na verdade estou pensando tudo isso. Mas diz, o que as palavras do pensamento também não omitem? O que elas também não podem dizer com clareza e exatidão? Clareza... Clara o dia... Claridade. Mas também, o que a luz esconde quando somente a escuridão revela? É, eu sei. Melhor apagar as luzes. O dia vem surgindo entre as brechas da janela. Os raios de sol – uma multidão que nos espia. Melhor apagar a luz, puxar as cortinas da janela. Deitar ao teu lado. Me aquecer em ti. E velar o teu corpo... ainda meu corpo... à luz de vela.

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